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Bom, só para Trump

A paz continua incerta, mas o presidente dos Estados Unidos empurra goela abaixo da Europa uma nova compra de armas

Bom, só para Trump
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É o que temos para hoje. Zelensky e os europeus foram em busca de um cessar-fogo e saíram com uma nova despesa de 90 bilhões de dólares. Putin aguarda – Imagem: Andrey Caballero-Reynolds/AFP
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A semana de negociações conduzidas pelo presidente dos Estados Unidos, ­Donald Trump, para encerrar a guerra na Ucrânia terminou com um grande ganhador, ele mesmo. Em troca de promessas vagas, o republicano conseguiu empurrar para a Europa um novo contrato, de 90 bilhões de dólares, em material militar, sob pretexto de defender o continente da ameaça russa. O segundo maior vencedor da rodada foi Vladimir Putin, que desfilou um sorriso triunfante sobre o tapete vermelho estendido por Trump na base aérea de Anchorage, no Alasca, na sexta-feira 15, depois de ter passado três anos escanteado pelas potências ocidentais.

Para Volodymyr Zelensky restou o prêmio de consolação de não ter sido achincalhado. O presidente ucraniano foi bem tratado desta feita, no Salão Oval da Casa Branca, em contraste com o linchamento diplomático a que fora submetido em fevereiro, na mesma poltrona. Naquele primeiro encontro, há seis meses, o vice-presidente dos EUA, JD Vance, criticara Zelensky diante das câmeras por ele não usar terno e gravata. Nesta segunda-feira 18, o líder ucraniano trocou o casaco tático por algo mais próximo de um traje formal. Se na diplomacia os gestos importam, os de ­Zelensky acusaram a capitulação de quem deve terminar a guerra sem uma parte importante de seu território.

A reunião que terminou com a promessa de um novo encontro é até agora o avanço mais promissor numa guerra iniciada em 2014, se considerada a anexação russa do território ucraniano da Crimeia, ou em 2022, se considerada a invasão em larga escala pela Rússia como ponto de partida. Militarmente, o conflito está estacionado num impasse. Nenhum dos dois lados tem condições de impor ao outro, à força e no curto prazo, suas próprias condições. O Kremlin consolidou a presença militar em grandes porções do leste ucraniano, mas é fustigado por uma resistência que, subvencionada com material bélico europeu e norte-americano, tenta a todo tempo empurrar essas linhas para trás. Como a manutenção desse impasse no longo prazo é economicamente custoso e politicamente inviável, Trump convocou a reunião que culminou com a promessa de um novo encontro.

Insegurança. Enquanto a paz definitiva prometida pela Casa Branca não chega, os ucranianos enfrentam o fogo cerrado – Imagem: Presidência da Ucrânia

Só o fato de trazer Putin pessoalmente à mesa de negociações foi um avanço. O presidente russo até então participava apenas por meio de assessores de segundo escalão nas iniciativas lideradas em julho por outros parceiros, como a Turquia, do presidente Recep Tayyip Erdoğan, além de manter somente conversas telefônicas a esse respeito, como nas ligações, também no mês passado, com o presidente da França, Emmanuel Macron. A disposição em comparecer a um encontro bilateral de alto nível com os EUA foi um sinal de disposição para fazer a agenda avançar em pontos antes estrangulados.

A conversa no Alasca foi cercada de interesse midiático e de especulações, fazendo lembrar as promessas superlativas de paz que Trump fez em seu primeiro mandato, quando se reuniu com o líder norte-coreano Kim Jong-un em junho de 2018, em Cingapura. Em ambas as ocasiões, os parcos resultados contrastaram com a enorme propaganda feita em torno de si mesmo, e com o papel pacificador que o norte-americano busca ansiosamente reivindicar, com a tenacidade de quem almeja um Prêmio Nobel da Paz.

Um resultado intermediário do encontro no Alasca poderia ter sido o anúncio de um cessar-fogo que permitisse uma interrupção na destruição e nas mortes diárias, principalmente em solo ucraniano, de maneira a abrir caminho para um acordo de paz definitivo na sequência das conversações. Mas Trump disse não acreditar nesse estágio intermediário, preferindo saltar direto para a resolução definitiva do conflito. A declaração assemelha-se àquela dos jogadores de cartas que, sem uma boa mão, resolvem blefar com o pouco que têm, dobrando a aposta. Coube ao chanceler alemão, Friedrich Merz, manifestar a desconfiança com essa postura: “Não posso imaginar que a próxima reunião ocorra sem um cessar-fogo, então vamos trabalhar nisso e tentar exercer pressão sobre a Rússia”. O presidente dos EUA havia, porém, batido o martelo na direção contrária: “Não acredito que seja necessário um cessar-fogo”.

Por ora, resta no ar a promessa de uma nova reunião

A divergência entre Merz e Trump resume bem a disparidade de forças entre os EUA e a Europa, que, dias atrás, foi resumida assim pelo primeiro-ministro polonês, Donald Tusk: “Quinhentos milhões de europeus estão pedindo a 300 milhões de americanos que os defendam de 180 milhões de russos”. Ou seja, a Europa está penhorada militarmente aos EUA, de quem depende completamente para se proteger da ameaça que vê encarnada em Moscou.

Um diplomata europeu familiarizado com as discussões sobre a reestruturação militar da Europa disse a ­CartaCapital que “a lógica europeia nessa questão é existencial, enquanto a lógica americana é comercial”. Para Trump, a preocupação é a de que os parceiros da Otan aumentem os gastos militares para ao menos 2% de seus próprios PIBs, se possível comprando cada vez mais material bélico dos Estados Unidos. Para esse diplomata, os líderes europeus foram a ­Washington “agradar a um personagem do qual dependem hoje, independentemente do caráter que ele tem”. Ele nota que ao menos metade do material bélico de um ­país como a França depende hoje dos EUA e “metade do que um militar de infantaria usa depende de outros países”. A Europa trabalha para se livrar dessa dependência num horizonte longo, de 40 anos, mas os primeiros efeitos dessa mudança podem começar a ser sentidos nos próximos cinco anos, de acordo com ele.

Enquanto os aliados europeus permanecem penhorados nas mãos de Trump, a Ucrânia vê crescer o risco de perder a Crimeia e, no mínimo, a região do ­Donbas, na qual grande parte da população é de origem russa. Numa nova rodada de negociações com Putin, ainda incerta no formato, na data e nos interlocutores envolvidos, também deve estar sobre a mesa um compromisso de não agressão de Moscou à Europa. Se, por um lado, o conceito de “não agressão” é claro, por outro, a forma de implementação é nebulosa.

Fora do baralho. A entrada da Ucrânia na Otan tornou-se menos provável – Imagem: Acervo/Otan

A Ucrânia é um dos maiores países europeus e sua fronteira com a Rússia se estende por quase 2 mil quilômetros, a mesma distância que separa São Paulo de Salvador. Estacionar tropas internacionais capazes de efetivamente repelir uma nova invasão russa seria tarefa para uma mobilização que superaria o atual contingente de países como a França ou a Alemanha, especialmente depois de Trump ter dito que não pretende alocar militares norte-americanos para essa função.

Uma proteção desse tipo sobre a Ucrânia teria ainda de ser feita fora do guarda-chuva institucional da Otan. Embora, na prática, uma presença militar europeia no território ucraniano tivesse o mesmo efeito prático ao de uma incorporação à aliança, a diferença é que não haveria aplicação do artigo 5º do tratado da Organização, que prevê a autodefesa mútua e solidária entre todos os integrantes quando um deles é atacado. Outra possibilidade é a de que a Europa e os EUA não mobilizem tropas de infantaria para essa função, apenas estabeleçam zonas de exclusão aérea sobre a Ucrânia, para impedir bombardeios e envios de drones russos.

Todos esses arranjos dependem, no entanto, dos contatos diretos entre Trump e Putin. O presidente dos EUA já falou na possibilidade de um novo encontro, desta vez entre ele, o russo e Zelensky, mas igualmente mencionou a possibilidade de que as conversações sigam apenas entre os dois lados em batalha. Após toda essa rodada de conversações em Washington, com os europeus, e no Alasca, com os russos, o cenário segue incerto, a ponto de o republicano ter dito sobre Putin na terça-feira 19 à emissora Fox News: “É possível que ele não queira um acordo”. De certo mesmo, por ora houve a conquista dos EUA dos contratos bilionários em material bélico para manter de pé o trato ou o distrato, seja como for. •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bom, só para Trump ‘

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