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O ritmo da alta de preços cede e o governo Lula colhe os dividendos

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Expectativa. O ministro Haddad projeta o barateamento de produtos alimentícios nos próximos meses. Só a carne recuou 0,3% em julho, segundo o IPCA – Imagem: José Cruz/Agência Brasil e iStockphoto
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Boas notícias em série sobre a inflação, inclusive a de alimentos, apesar da conjuntura interna complexa e da escalada dos Estados Unidos, são a evidência mais relevante da reversão das expectativas a respeito da variação de preços, aponta boa parte dos dados e das análises dos economistas. A evolução recente do Boletim Focus revela uma persistência dessa mudança. O relatório do Banco Central, feito a cada semana a partir de consulta a operadores do sistema financeiro, projetava, na sexta-feira 15, uma inflação de 4,95% para 2025. O índice despontou após 12 semanas consecutivas de redução das estimativas. Para 2026, a inflação prevista pelo Focus é de 4,40%. Neste caso, o indicador está em declínio há cinco semanas. Para 2027, o cálculo de 4% se mantém há 26 semanas.

O IPCA, principal indicador de inflação, subiu 0,26% em julho diante do mês anterior, com variação negativa de 0,27% para o item alimentação e bebidas. Sobressaem as reduções de preço do feijão-fradinho, em 3,57%, do arroz, em 2,89%, e das carnes, em 0,30%, com peso na alimentação e efeito eleitoral. No mesmo dia da divulgação dos dados do IPCA pelo IBGE, o presidente Lula disse que a população tinha razão em estar com raiva do governo devido ao reajuste dos alimentos. Em audiência pública no Congresso, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, afirmou esperar uma continuidade da deflação do segmento nos próximos meses.

Os dados dos preços ao produtor acumulados em 12 meses, medidos pelo IPA–DI, mostram uma desaceleração ainda mais acentuada que aquela do ­IPCA. Entre fevereiro e julho, a variação em 12 meses despencou de 10,4% para 1,9%. Entre os principais motivos do declínio das expectativas e queda dos preços sobressaem a safra agrícola e o efeito favorável do dólar mais fraco sobre os preços internos, tanto de produtos agrícolas quanto de insumos utilizados no setor. A safra deste ano deve totalizar 333,4 milhões de toneladas, 13,9% acima da colheita de 2024. Destaca-se ainda a queda dos preços de importação de industrializados fabricados na China, superofertados no mundo desde que o país asiático percebeu os primeiros indícios de alta nas taxas de importação dos EUA. Além disso, o tarifaço aplicado ao Brasil redirecionou produtos domésticos, inclusive alimentos, antes exportados aos Estados Unidos para o mercado interno, com aumento da oferta e a consequente redução de preços.

Alguns itens, como carne e feijão, registram deflação

A pesquisa Genial/Quaest divulgada na quarta-feira 20 sugere que os preços dos alimentos, e a inflação em geral, continuam a pesar nas decisões dos eleitores. A distância entre os 46% que aprovam o governo Lula e os 51% que desaprovam é metade daquela constatada na pesquisa realizada em julho, quando a aprovação atingiu 43% e a desaprovação, 53%. Em janeiro, a aprovação era de 47% e a desaprovação, de 49%. Destaca-se ainda a expectativa dos entrevistados quanto ao desempenho da economia nos próximos 12 meses. A parcela daqueles que acreditam em melhora aumentou de 35% para 40%, enquanto o grupo que crê em uma piora caiu de 43% para 40% dos entrevistados.

O jogo de pressões entre os fatores de alta da inflação e os de baixa seguirá acirrado. O economista Saulo Abouchedid, professor da Facamp, elenca entre os motivos que contribuíram para a queda dos preços o câmbio a deflação dos industrializados chineses, o tarifaço e um efeito da política monetária restritiva. Entre os aspectos que pressionam a subida, a incerteza a respeito da variação cambial daqui em diante e a política monetária.

O primeiro fator de reversão das expectativas inflacionárias é a desvalorização da moeda norte-americana, diz. O dólar chegou a bater cotações mínimas, na comparação com meses, e mesmo anos, anteriores. Essa tendência de valorização do real contribui, no curto prazo, para a desaceleração dos preços, pois boa parte da inflação é importada. O segundo fator é a deflação de preços de bens industriais, e de bens de consumo em geral, provenientes da China. O terceiro é o tarifaço, que impactou principalmente as commodities. Há uma tendência de redução de preços das carnes, do café, e isso se reflete na variação do IPCA. Há estimativas de a inflação ­anual cair para 4,5%. “É uma revisão considerável de expectativas, evidenciada no próprio Focus”, sublinha Abouchedid.

No coador. O tarifaço de Trump tende a reduzir o preço do café no curto prazo – Imagem: iStockphoto

Há um efeito da política monetária restritiva, ou contracionista, no jargão dos economistas, prossegue o professor da Facamp. Os juros altos, com certa defasagem, impactaram a atividade econômica, o que é visível nos dados divulgados a cada mês pelo IBGE sobre comércio, indústria e serviços. Ocorre uma desaceleração do crescimento, apontam os dados acumulados dos três setores. O crescimento da atividade persiste, mas com velocidade menor, apesar de certa resiliência do mercado de trabalho. E os efeitos chegam até os preços.

O principal fator de risco de alta da inflação vem, paradoxalmente, do câmbio. Há ainda o problema dos desdobramentos do tarifaço, instabilidade relacionada às decisões do presidente dos EUA, Donald Trump, e uma incerteza geopolítica global. Isso pode afetar tanto a variação cambial quanto os preços das commodities. O grau de instabilidade mundial não é desprezível, do ponto de vista tanto dos preços internacionais quanto do movimento dos capitais e das finanças, e afeta países como o Brasil. “A vulnerabilidade externa é elevada e repercute no nível de preços.”

Outro ponto é a política monetária. Existe uma expectativa de início de redução dos juros, prossegue o economista, portanto, o mercado tende a pressionar por um corte tímido da taxa Selic, precisamente com o argumento da inflação, embora o acadêmico não aposte nessa possibilidade, pois a reversão de expectativa inflacionária reduz a pressão da Faria Lima.

As incertezas sobre a variação do dólar e a instabilidade global permanecem no radar

“Quando menciono a política monetária, não estou me referindo ao risco da inflação, mas das dificuldades de promover uma política monetária expansionista mesmo em cenários como o atual, de preços cadentes, em que há espaços de política econômica e política monetária para se pensar mais no crescimento, não na inflação”, ressalta o professor. “Acho que não há um risco para a inflação, mas o desafio é esse, o governo aproveitar este bom momento para promover uma política monetária expansionista e uma política fiscal não tanto defensiva. É um momento propício.”

Os efeitos do tarifaço compõem um capítulo próprio nas discussões sobre a inflação, no Brasil e no resto do mundo. A queda de preços de produtos redirecionados dos EUA para o mercado interno deverá ser temporária, preveem vários economistas. O médio prazo pode revelar desdobramentos distintos daqueles possíveis de vislumbrar hoje, sugere o economista Adam S. Posen, presidente do Peterson Institute for International Economics, think tank com sede em ­Washington. Ex-consultor do FMI e dos governos dos EUA, Reino Unido e Japão, Posen avalia, em artigo publicado na terça-feira 19, a possibilidade de marcas brasileiras, não especificadas, se beneficiarem com a escalada tarifária estadunidense.

As cadeias de suprimentos norte-americanas que o governo Trump alega querer proteger se tornarão menos confiáveis, inerentemente mais caras, menos diversificadas em suas fontes de abastecimento e sujeitas a mais riscos de choques específicos dos EUA, elenca Posen no artigo, recomendado pelo ex-diretor-geral do FMI e renomado economista Olivier Blanchard. “Marcas europeias, asiáticas e até mesmo brasileiras e turcas provavelmente ganharão participação de mercado à custa das empresas estadunidenses, enquanto os padrões técnicos para produtos como automóveis e tecnologias de serviços financeiros divergirão cada vez mais das normas norte-americanas. Muitos desses fenômenos serão autorreforçados, tornando-os difíceis de reverter mesmo após Trump deixar a Casa Branca”, anota o economista. •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Picanha mais em conta’

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