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A misoginia como arma

Livro expõe o sadismo sexual dos algozes da ditadura contra as “mulheres subversivas”

A misoginia como arma
A misoginia como arma
A obra inclui relatos de ex-presas políticas a comissões da verdade e à própria pesquisadora – Imagem: Davi Telles
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Entre agosto e novembro de 1970, Cecília Bouças Coimbra viveu os piores dias de sua vida. Militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi presa, torturada e vítima de todo tipo de humilhação. “Falar daqueles três meses e meio é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, medo, pânico, abandono, desespero”, relembra, ao descrever o que aconteceu quando foi levada à sede do DOI–Codi do Rio de Janeiro, aos 29 anos. “Recebo uma ‘estranha’ visita, Amílcar Lobo, que se dizia médico, tirou a minha pressão e perguntou se era cardíaca. ‘Preparavam-me’ para a tortura, para que ela fosse mais eficaz. Geralmente, eram as mulheres que recebiam essa ‘visita’. Colocaram-me nua e aconteceram as primeiras sevícias. Os guardas praticavam vários abusos sexuais. Os choques elétricos em meu corpo molhado eram cada vez mais intensos. O filhote de jacaré passando pelo meu corpo nu, com sua pele gelada e pegajosa… perdi os sentidos, desmaiei”, relata Cecília, em depoimento publicado no livro A Misoginia na Ditadura: Relatos de Ex-presas Políticas (Dialética Editora).

A obra, lançada em 13 de agosto, no Recife, lança luz sobre o método empregado por agentes do Estado contra mulheres presas pelo regime militar – um tratamento desproporcional e ainda mais perverso do que aquele imposto aos homens, confirmando a misoginia como uma marca da ditadura. O livro é uma adaptação da pesquisa de doutorado da advogada Renata Santa Cruz e reúne uma série de ­depoimentos de ex-presas políticas prestados à Comissão Nacional da Verdade e às comissões estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo, além de entrevistas realizadas pela autora com sete das vítimas.

“As mulheres eram torturadas sempre por homens. Muitas sofreram aborto e foram estupradas. As torturas eram acompanhadas de xingamentos pela simples condição de ser mulher. Muitas vezes, utilizavam ratos, baratas, jacarés e sempre procuravam desestabilizar a maternidade das vítimas. Elas eram humilhadas com todo tipo de ofensas”, destaca a autora.

Uma das histórias apresentadas no livro é a de Crimeia Schmidt, presa quando estava grávida de sete meses – condição que não a livrou da tortura. Segundo seu relato, já em trabalho de parto, após a bolsa ter rompido, ela foi levada a um hospital militar, onde o médico de plantão teria se recusado a atendê-la. Ele ainda teria dito que, se ela perdesse o bebê, “não haveria problema, pois seria um comunista a menos”. Rosalina Santa Cruz, tia da pesquisadora, foi presa juntamente com o marido, enquanto o filho ficou no apartamento do casal, sob a mira de militares. “Sem poder mamar e acostumado a ter a mãe por perto, meu filho, segundo a ‘menina’ que cuidava dele, chorava muito e os policiais, irritados, o ameaçavam, pegaram meu filho e ameaçaram jogá-lo pela janela.” Outra vítima retratada no texto, mas que não foi identificada, disse ter sido estuprada na primeira noite da prisão e torturada na frente dos filhos. “Meus filhos de 5 e 4 anos me viram na cadeira de dragão, vomitada, urinada e evacuada.”

A Misoginia na Ditadura e a Justiça de Transição. Renata Santa Cruz Coelho. Dialética Editora (244 págs., 84,90 reais)

“As militantes políticas subverteram a ordem patriarcal, solidamente acomodada na ideologia ditatorial. Esses casos revelam a violência sistemática e o abuso de poder praticados pelos torturadores, que utilizaram o estupro como tática de repressão e punição contra as mulheres ‘subversivas’, tanto em relação à ditadura quanto à sociedade patriarcal”, destaca Renata Santa Cruz. Ela acrescenta que a misoginia, enquanto sistema de poder, foi utilizada à exaustão pela ditadura, porque as mulheres saíram do espaço privado para o espaço público, tradicionalmente reservado aos homens.

O modus operandi dos agentes da repressão, quando aplicado contra mulheres, ia além dos métodos já brutais utilizados contra os homens. Estes incluíam­ o uso de equipamentos como a cadeira do dragão, a geladeira, palmatórias e o pau de arara. A cadeira do dragão era um dispositivo conectado a uma fonte elétrica, que disparava choques em diferentes partes do corpo da vítima. A geladeira consistia em uma cela minúscula, ora congelante, ora superaquecida, onde os presos eram mantidos por dias sem comida ou água, impedidos de sentar ou deitar, e obrigados a ouvir sons aterrorizantes, como vozes de outros presos sendo torturados. A palmatória era usada para agressões físicas, prática que, lamentavelmente, ainda ocorre em algumas unidades prisionais brasileiras. O pau de arara, por sua vez, consistia em um método em que a vítima era suspensa de cabeça para baixo e submetida a diversos tipos de agressão física e psicológica.

No caso das mulheres, as práticas de tortura incluíam elementos específicos de violência sexual. Muitas foram violentadas na chamada “cadeira do ginecologista”, onde sofriam abusos e choques elétricos em regiões íntimas como vagina, ânus e mamilos. “Um dia o Calandra me chama para interrogatório e diz: ‘Senta aí’. Era a cadeira do ginecologista. Nessa hora ele ficou sozinho com mais alguém, que eu não me lembro quem. Todo mundo sem capuz, ele e eu. É na cadeira do ginecologista que eles pegam choque elétrico e botam (na vagina) com as seguintes palavras: ‘Isto é para você nunca mais botar comunista no mundo’”, relata outra vítima não identificada retratada no livro. Rosalina Santa Cruz disse que ficou oito meses sem menstruar durante a prisão, mas, após uma sessão de tortura psicológica, teve uma hemorragia interna. “Quando fiquei em continência, olhando para aquele homem, percebi que algo corria entre as minhas pernas. Eu estava sangrando. Eu tive hemorragia de medo, de tudo o que passei.”

Além de reunir depoimentos de vítimas, a obra defende a revisão da Lei da Anistia, de 1979, atualmente sob análise do Supremo Tribunal Federal, e cobra a responsabilização dos agentes do Estado que cometeram as atrocidades reveladas no livro. A autora ainda propõe que o Brasil priorize a justiça de transição como uma política efetiva de memória, reparação e responsabilização, com o objetivo de impedir que novos golpes, a exemplo do tentado em 8 de janeiro de 2023, voltem a colocar em risco a democracia. •

Publicado na edição n° 1376 de CartaCapital, em 27 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A misoginia como arma’

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