Política
Uma mão lava a outra
A banda do Congresso enrascada com emendas parlamentares topa apoiar anistia aos golpistas em troca de proteção. O desfecho depende de pressão social


O motim da extrema-direita no Congresso, em reação à prisão domiciliar de Jair Bolsonaro, atraiu holofotes e terminou graças a um acordo no escurinho. Uma parte dos negociadores presentes no gabinete de Arthur Lira, ex-presidente da Câmara dos Deputados, queria anistiar golpistas condenados, destino inescapável de Bolsonaro em julgamento previsto para setembro. A outra sonhava com proteção para congressistas em inquéritos policiais e processos judiciais, e a explicação chama-se “emenda parlamentar”. Os dois grupos comprometeram-se com a causa alheia. Uma mão a lava a outra, e todos ganham. Pronto: fim do motim, e foi só aí que o comandante da Câmara, Hugo Motta, conseguiu sentar na própria cadeira na volta do recesso de julho. Ele não havia participado da costura do acordo, mas os negociadores apostam em Lira para dobrá-lo. O alagoano foi o responsável pela vitória do paraibano como seu sucessor. E tem uma quedinha por Bolsonaro. “O Brasil precisa tratar melhor seus ex-presidentes”, declarou Lira, após o capitão ser trancado em casa.
Por enquanto, não está claro o que Motta vai fazer com o pacto que merece ser descrito sem meias-palavras: escandaloso. Ele diz não ter “preconceito” com qualquer pauta e que tudo pode ser debatido. Mais: que há “incômodo” de congressistas com o Supremo Tribunal Federal, daí estar disseminada entre eles a vontade de enfrentar a Corte. Em 12 de agosto, na primeira reunião após o motim, o presidente da Câmara ouviu da maioria dos líderes partidários que era melhor não votar o fim do foro especial durante a semana. O plano dos negociadores da sala de Lira era apreciar essa proposta antes da anistia. E com um texto de proteção em causa própria. Além de retirar do STF o foro criminal de parlamentares, a intenção é impor autorização legislativa prévia para a instauração de inquérito e ações penais.
O fim do foro privilegiado convém a parlamentares investigados por desvios de emendas
Um articulador político do Palácio do Planalto soube que alguns líderes temem apanhar da opinião pública, caso abracem o pacto. É isso que parece segurar Motta até aqui. Já a turma do lema “uma mão lava a outra” insistiu ser preciso mudar o foro já: o PL, o PP de Lira, o União Brasil de Davi Alcolumbre, presidente do Senado, e o Novo, linha auxiliar do capitão. O PSD, apontado pelo líder do PL, Sóstenes Cavalcante, como tendo aderido ao pacto, engrossou o coro dos que defenderam não mexer no foro agora. “Existem, sim, parlamentares nesta Casa e no Senado que são chantageados por ministros do STF”, afirmou Cavalcante na tribuna da Câmara, em 7 de agosto, na ressaca do motim.
O que o evangélico deputado considera “chantagem” é o poder que o Supremo tem graças à condição de tribunal onde congressista fora da lei presta contas. É na Corte que deputados e senadores metidos, por exemplo, em desvio de dinheiro público são processados e julgados. A cúpula do Congresso não está nem um pouco à vontade para atender às suplicas do bolsonarismo e desafiar o STF. Um dos suplentes de Alcolumbre, um empreiteiro no Amapá, foi alvo da Polícia Federal em julho. Um tempo atrás, a PF contou ao Ministério Público Federal que o vice-presidente do Senado, Eduardo Gomes, do PL do Tocantins, foi citado numa conversa entre um auxiliar dele e um assessor de um deputado que é réu. A cidade onde o pai de Motta é prefeito na Paraíba tem uma obra que levou o MPF a apresentar à Justiça sete denúncias neste ano. Um dos vice-presidentes da Câmara, o baiano Elmar Nascimento, do União Brasil, é estrela de uma operação da PF que foi cinco vezes às ruas desde dezembro.
Imagem: Polícia Federal/DF
A situação do médio e do baixo clero parlamentar não é melhor. Segundo fontes da PF, há mais de uma centena de inquéritos no Supremo abertos para investigar falcatruas com emendas. Tem sido regra na polícia: surgiu nome de congressista em rolo, informa-se ao Supremo e ao MPF, um procedimento oposto ao da Operação Lava Jato, quando havia preferência por manter às escondidas apurações contra deputados e senadores. Dos 11 ministros do STF, oito são relatores de inquéritos sobre emendas, embora a bronca dos legisladores se concentre em Flávio Dino. É este quem tenta fazer valer um julgamento de 2022 que aboliu o “orçamento secreto”, e quem cuida de processos capazes de extinguir o caráter impositivo delas. Um deputado da Bahia comenta a portas fechadas: Dino é odiado no Legislativo. Um articulador governista desconfia que, se o magistrado acabar com a impositividade, ou seja, desobrigar o governo de liberar verba para emenda, será o primeiro a sofrer impeachment no Brasil.
Dino acredita que as emendas são o maior caso de corrupção da história brasileira. Em dezembro de 2024, autorizou a PF a abrir inquérito para investigar uma manobra de Lira, que estava então à frente da Câmara. A manobra driblava restrições judiciais para forçar o governo a pagar, sem a devida transparência, 4,2 bilhões de reais em emendas. Nos bastidores do Congresso, há quem diga que aquela iniciativa de Lira foi fundamental para eleger Motta como presidente da Câmara, em fevereiro de 2025. Eis por que o deputado do PP de Alagoas foi o anfitrião do pacto “uma mão lava a outra” e para ter capacidade de influenciar as decisões do sucessor.
Há mais de uma centena de inquéritos da Polícia Federal para investigar falcatruas em emendas
Investigadores da PF concordam com Dino que as emendas são o maior caso de corrupção. Há 50 bilhões de reais para elas no orçamento deste ano. Desde 2020, época do governo Bolsonaro em que a grana para emendas começou a jorrar, foram separados no orçamento 289 bilhões para elas e gastos efetivamente 163 bilhões, média de 27 bilhões anuais. A PF considera prioridade investigar a malandragem com emendas, empenha-se para saber como a engrenagem do parlamentarismo disfarçado foi montada e quem são os principais personagens políticos por trás. “Prioridade” significa destacar pessoal e recursos em bom volume para averiguações e batidas de rua.
O foco policial neste momento são os nós logísticos dos esquemas, ou seja, as pessoas que metem a mão na massa a serviço de figurões. É o que se conhece por “operadores”. Estes costumam ser empresários ou ex-políticos. Os agentes federais já constataram que os esquemas com emendas se espalharam pelo País e pulam de um estado a outro, falta entender o motivo. Identificou ainda que os doleiros responsáveis por lavar o dinheiro sujo não estão apenas no tradicional eixo entre Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. Já há doleiros também pelo Nordeste.
Outra descoberta, mais espantosa e decorrente do trânsito de delegados entre as diretorias da PF que cuidam do combate à corrupção e do enfrentamento ao tráfico de drogas. Há proximidade crescente entre autores de emendas e crime organizado, em especial o Comando Vermelho. Uma característica das facções é ocupar territórios e mandar no pedaço. Isso dá força para impor aos moradores que votem nos candidatos escolhidos por elas. Ter cabos eleitorais é sempre do interesse de políticos. Estes retribuem ao enviar recursos de emendas para a região controlada pelo crime. A verba chega ao caixa das facções por meio de licitações fajutas promovidas pelo poder público local, como um município. Firmas em nome de laranjas, mas pertencentes aos grupos criminosos, entram em concorrências de fachada e abocanham contratos milionários, que serão pagos, no fim das contas, com emendas parlamentares.
Motta teme pelo destino do pai, Nabor Wanderley, um prefeito na mira do MPF. Alcolumbre tem um suplente, Breno Pinto, investigado pela PF – Imagem: Redes Sociais/Agência Câmara e Redes Sociais/Agência Senado
Um caso no Ceará sugere essa ligação entre emendas e facções. Envolve o deputado Júnior Mano, eleito em 2022 pelo PL e desde o fim de 2024 filiado ao PSB. Vice-campeão de votos no estado, é investigado na Operação Underhand, deflagrada em julho pela PF. É suspeito de estar no centro de um esquema que tentou influenciar, com dinheiro desviado de emendas, a eleição em 51 cidades cearenses no ano passado. Um candidato que Mano apoiou no município de Canindé tinha como chefe de campanha um traficante dos Guardiões do Estado. Essa organização criminosa foi fundada por dissidentes do PCC e tornou-se braço armado da facção paulista no Nordeste. A Underhand corre no STF aos cuidados do juiz Gilmar Mendes. Nela, a PF esbarrou em dois deputados cujos nomes foram logo relatados à Corte. O líder do governo na Câmara, José Guimarães, do PT, e Eunício Oliveira, do MDB, ex-presidente do Senado. Mendes autorizou abrir inquérito contra ambos.
Eduardo Gomes, vice-presidente do Senado, também foi um nome no qual a PF esbarrou por acaso em uma investigação. Foi na Operação Emendário, que mirava o deputado Josimar Maranhãozinho, chefe do PL do Maranhão. A polícia apreendeu o celular de um assessor de Josimar na Câmara, Carlos Roberto Lopes. No aparelho, havia conversas de Lopes, em 2022, com um contato identificado como “Lizoel assessor”. Lizoel Bezerra foi motorista na campanha de Gomes ao Senado. Escreveu a Lopes mensagens a cobrar 1,3 milhão de reais. Numa delas, encaminhou a foto de uma conversa escrita que tinha tido com o senador. “O cara mandou?”, perguntava Eduardo Gomes e Lizoel. Para a PF, “mandou” refere-se a dinheiro. O encontro fortuito da pista levou a polícia a informar ao MPF. Não se sabe se o órgão tomou providências.
No caso de indecência com dinheiro de emenda numa cidade do sertão da Paraíba comandada pelo pai de Hugo Motta, o MPF tomou. Entre maio e julho, o órgão apresentou à Justiça sete denúncias – quatro criminais e três por improbidade – decorrentes da Operação Outside, de 2024. Nessa investigação, a PF apura fraude em licitação, desvio de verba e corrupção em obras de duas avenidas de Patos.
Dino angariou a antipatia do Legislativo ao encampar a luta contra o “orçamento secreto” – Imagem: Arquivo/STF
As obras começaram em 2021 graças a uma emenda de 4,2 milhões, inserida por Motta no orçamento no fim do ano anterior. O pai dele, Nabor Wanderley Filho, tinha sido eleito (não pela primeira vez) prefeito de Patos em outubro de 2020. Foi a gestão de Nabor que realizou a licitação para escolher a empreiteira responsável pelo empreendimento nas avenidas, a Engeplan. Segundo o MFP, a licitação foi uma farsa. Foram acusados à Justiça empresários e servidores que contribuíram para o teatro e se beneficiaram dele. Inclusive, um secretário municipal, José do Bomfim Araújo, e a chefe da área de convênios da prefeitura, Eulanda Ferreira da Silva. Para os recursos da emenda de Motta ingressarem no cofre municipal, havia um convênio com Brasília.
Pertíssimo de Alcolumbre também há cheiro de bandalheira com verba pública, embora não de emendas. O segundo suplente dele no Senado foi alvo da PF em julho. A polícia investiga corrupção e desfalque do Erário em despesas com a conservação de uma estrada federal no Amapá. A terra natal de Alcolumbre é o único estado sem ligação rodoviária com o resto do País. Uma estrada a atravessá-la começou a ser construída em 1932 para estabelecer a conexão. É a obra inacabada mais antiga do Brasil e é nela que há suspeita de mutreta. Dadas as condições climáticas, diz um policial, não é difícil simular gastos de manutenção na BR-156. Afinal, quem vai saber se uma motoniveladora passou mesmo pelo meio do nada?
A Operação Route 156, desencadeada em julho, atingiu o empresário Breno Barbosa Chaves Pinto, eleito com Alcolumbre em 2022 na condição de suplente. Chaves é dono da empreiteira Rio Pedreira. Segundo fontes da PF, há indícios de que ele seja o principal articulador do núcleo privado de fraudes a licitações do escritório amapaense do Departamento Nacional de Obras de Infraestrtutura. Os contratos suspeitos relativos à BR-156 somam 60 milhões de reais. Os federais acreditam que o empresário tem se valido do fato de ser suplente de senador para abrir canais dentro do Dnit, cobrar a liberação de verbas e ajustes em editais. Conversas interceptadas o apontam como padrinho da nomeação de pessoas para cargos estratégicos no órgão, como uma servidora que lhe repassaria informações.
Desde 2020, as emendas sequestraram 163 bilhões de reais do orçamento
As investigações revelaram que licitações vencidas pela Rio Pedreira foram um faz de conta, com a cumplicidade de concorrentes. Há registros de reuniões pré-licitatórias e troca de documentos antes da publicação dos editais. Descobriram-se ainda retiradas frequentes de grandes valores em espécie das contas da Rio Pedreira e de firmas associadas, de quase 3 milhões de reais, em datas próximas a pagamentos feitos pelo setor público. Em novembro de 2024, Chaves foi flagrado ao sair de um banco com 350 mil em uma mochila. Esses elementos embasaram medidas cautelares contra o empresário em julho, como busca e apreensão e bloqueio de bens no valor de 3,3 milhões de reais, por suspeitas de tráfico de influência, licitação fraudulenta, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha.
No tempo em que Alcolumbre, o responsável por escolher Chaves Pinto como suplente, tinha sido presidente do Senado no governo Bolsonaro, os parlamentares aprovaram uma lei para estender até o Amapá a área de atuação da Companhia de Desenvolvimento do Vale do Rio São Francisco, a Codevasf. Rio São Francisco que, registre-se, nasce em Minas Gerais e corre no Nordeste.
A Codevasf é personagem de uma das maiores operações da PF contra a patifaria com o dinheiro de emendas, a Overclean. A operação, em curso no Supremo sob a relatoria do juiz Nunes Marques, teve cinco batidas de rua desde dezembro passado. Na última delas, em julho, atingiu com buscas um ex-presidente da companhia, Marcelo Andrade Pinto, que havia sido nomeado para um posto na estatal no governo Bolsonaro, por indicação do deputado Elmar Nascimento. Este, repita-se, é vice-presidente da Câmara e filiado ao União Brasil, o partido de Alcolumbre. Quando Andrade deixou o cargo, neste ano, foi substituído por um apadrinhado do presidente do Senado.
Empenhado na anistia a Bolsonaro, o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, celebra o acordo com o Centrão: “Existem, sim, parlamentares que não são chantageados por ministros do STF” – Imagem: Arquivo/AFP e Lula Marques/Agência Brasil
A quinta fase da Overclean bloqueou 85 milhões de reais com aval de Nunes Marques. Vasculhou a cidade de Campo Formoso, na Bahia, lar de Elmar Nascimento. O prefeito é Elmo Aluízio Vieira Nascimento, irmão do deputado, e também foi alvo de buscas da polícia. Outros dois atingidos foram um ex-assessor de Elmar, Amaury Albuquerque Nascimento, e um primo do parlamentar, Francisco Manoel do Nascimento Neto. Com este último, a PF encontrou dinheiro em um sapato. Na primeira fase da Overclean, em dezembro de 2024, Francisco Manoel tinha jogado 200 mil reais cash pela janela de casa, em uma mochila, pouco antes de ser preso.
De início, a Overclean debruçava-se sobre estripulias com 1,4 bilhão de reais em contratos do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca, o Dnocs, na Bahia. Chegou à Codevasf depois, tendo passado no caminho por prefeituras do PT na Bahia, por um deputado do PDT baiano, por um secretário municipal em Belo Horizonte e por um empresário conhecido como “Rei do Lixo”, José Marcos de Moura. Em todos os casos, o enredo se repete: dinheiro de emenda sai de Brasília e chega a algum município que vai simular licitações, a fim de que a grana entre no bolso de uma firma predefinida, a qual fará os recursos beneficiarem o congressista autor da emenda.
O enredo com emendas que colocou os primeiros parlamentares no banco dos réus no Supremo é um pouco distinto. Os acusados são todos do PL. Pastor Gil, do Maranhão, Bosco Costa, de Sergipe, e Josimar Maranhãozinho, aquele mesmo a partir do qual a PF esbarrou no senador Eduardo Gomes. O trio foi denunciado pelo MPF por cobrar de uma prefeitura maranhense propina para direcionar à cidade, em 2020, 6 milhões de reais em emendas. Os depoimentos nessa ação penal começaram em 13 de agosto. O processo está sob a relatoria do juiz Cristiano Zanin. É o tipo de caso que a turma do pacto bandido quer evitar com a mudança no foro privilegiado. Se a opinião pública não ficar vigilante, talvez o objetivo seja alcançado. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma mão lava a outra’
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