Mundo
Israel, Hamas e a disputa sobre quem é civil em Gaza
Repórteres pró-Hamas seguem protegidos pelas leis de guerra, exceto se participarem das hostilidades


(Este artigo foi publicado primeiro no Boletim Internacional de CartaCapital, conteúdo exclusivo para assinantes.)
No último domingo 10, um ataque israelense matou seis profissionais da imprensa, entre jornalistas e cinegrafistas, na Faixa de Gaza. Quatro deles trabalhavam para a emissora Al Jazeera. O grupo estava concentrado numa tenda na Cidade de Gaza, quando um drone pilotado à distância pelas forças israelenses realizou o ataque. Nenhum deles sobreviveu.
Desde o início do ciclo atual deste conflito, em 7 de outubro de 2023, o número de jornalistas mortos na Faixa de Gaza já chega a 192, segundo dados do Comitê para a Proteção dos Jornalistas. Este é a guerra mais letal da história para a imprensa.
Após a ação, as Forças de Defesa de Israel (IDFs, na sigla em inglês) publicaram um post no antigo Twitter dizendo que um dos jornalistas, Anas Al-Sharif, era, na verdade, “membro do Batalhão Jabaliya do Leste”, do Hamas, onde desempenhava a função de “chefe de uma célula terrorista num pelotão de foguetes guiados, disfarçado de jornalista”. Como evidência, apresentou planilhas atribuídas ao Hamas, nas quais consta o nome Anas Al-Sharif e seu número de telefone.
Na sequência, diversas fontes israelenses passaram a circular prints de mensagens de celular e de postagens antigas de Anas Al-Sharif nas quais ele celebrava o maior ataque terrorista já sofrido por Israel, em 7 de outubro de 2023, quando aproximadamente 1.200 pessoas – a grande maioria, de civis – foram massacradas pelo Hamas. Por fim, nas redes sociais, começaram a se multiplicar fotos nas quais Anas al-Sharif aparece abraçado a líderes do Hamas e até mesmo segurando um fuzil.
A Al Jazeera, por sua vez, publicou diversos relatos de civis palestinos e de outros profissionais de imprensa que deram testemunhos vívidos sobre a coragem de Anas al-Sharif como repórter e sobre a relevância que ele vinha tendo ao legar para a história o registro de uma guerra que já provocou a morte de mais de 40 mil palestinos. Para a Al Jazeera e diversas organizações da imprensa, este é mais um caso em que os israelenses matam jornalistas e fabricam histórias difamatórias para justificar seus atos.
O episódio trouxe à tona mais uma vez um debate interessante a respeito do papel da imprensa na cobertura das guerras – e neste conflito em Gaza, em particular. Neste debate, aparecem questões complicadas, como quais os limites éticos da cobertura feita pelos repórteres e de suas inclinações políticas, além dos questionamentos em relação à proximidade e à afinidade que eles têm com fontes militares e membros de grupos armados. No caso específico de Anas al-Sharif, discute-se sobretudo a suspeita de que ele tenha misturado ações de jornalista com ações de membro do Hamas – o que, para Israel, converteria o jornalista da Al Jazeera num alvo legítimo.
Do ponto de vista do Direito Internacional Humanitário, jornalistas são, em princípio, civis e, como tais, não são alvos militares legítimos e não podem ser atacados deliberadamente. Essa condição não muda ainda que este jornalista faça uma cobertura parcial, engajada politicamente, antiética, desinformativa ou até mesmo puramente mentirosa. Mesmo um propagandista – e mesmo que o lado escolhido seja o de um grupo como o Hamas – não perde a proteção a que tem direito como civil e, portanto, não se torna um alvo legítimo no conflito por ser um mau jornalista.
No caso concreto de Anas al-Sharif, o simples fato de ter aparecido abraçado com Yahya Sinwar, o líder do Hamas morto em outubro de 2024, não é suficiente para, por si só, violar sua condição de civil. O mesmo pode ser dito das mensagens de celular e das postagens atribuídas a ele, nas quais celebra o massacre de 7 de outubro. Tudo isso pode ser condenável. Pode até mesmo constituir um crime, passível de condenação; mas não é suficiente para, por si só, excluir o repórter da condição de civil e torná-lo um alvo legítimo.
Portar armas é diferente. As fotos nas quais al-Sharif aparece segurando um fuzil sugerem a participação dele no conflito, como combatente. O mesmo poderia ser dito sobre as planilhas nas quais ele figuraria como membro do Hamas. É claro que existe um debate compreensível sobre a veracidade de todo esse material, – e é saudável que haja essa desconfiança em relação aos dois lados de uma guerra na qual a verdade é sempre a primeira vítima. Ainda assim, mesmo tomando a imagem dele com o fuzil como verdadeira, há algumas questões a abordar, antes de concluir que ele pudesse ser um combatente e, portanto, um alvo legítimo.
Repórteres segurando armas e até mesmo disparando com elas é algo mais comum do que se imagina. Embora seja imprudente, de mau gosto, e uma provável violação à ética profissional, a verdade é que muitos colegas jornalistas – aqui mesmo, no Brasil – se empolgam ao pegar armas e disparar quando participam de treinamentos e outras atividades promovidas por militares. Se esse foi o caso de Anas al-Sharif, então ele não perde sua condição de civil, a menos que haja evidências de que ele efetivamente tomou parte nas hostilidades e realizou ações como combatente do Hamas, e não apenas como um entusiasta, militante, simpatizante ou defensor.
Então, do ponto de vista do direito aplicado na guerra, os jornalistas são civis, não são alvos legítimos; independentemente de suas opiniões, postagens e militâncias políticas. Para serem alvos legítimos, só se eles efetivamente cruzam a linha, portam armas e participam do conflito como combatentes. Isso é o que o direito diz.
Alguém pode então se perguntar se existe mesmo algum jornalista que tenha cruzado essa linha e tenha chegado ao absurdo de vestir uma farda, pegar em armas e participar de uma ação militar durante uma cobertura jornalística. Por incrível que pareça, o jornalista israelense Danny Kushmaro, do Canal 12, não apenas fez isso como registrou e levou ao ar as imagens que mostram a si mesmo explodindo uma construção no Líbano, juntamente com uma patrulha militar de seu país. É Kushmaro que – fardado e de capacete – aperta o botão de um detonador que leva uma construção aos ares.
O âncora israelense Danny Kushmaro foi filmado apertando o detonador para explodir casas no sul do Líbano (Foto: Reprodução)
Kushmaro, assim como Anas al-Sharif, é um entusiasta e propagandista de um dos lados da guerra. Só que, enquanto faltam evidências conclusivas de que o jornalista da Al Jazeera tenha desempenhado de fato alguma função como combatente, no caso de Kushmaro isso é inquestionável, pois ele mesmo levou a prova ao ar, se jactando de agir como um militar na guerra.
A comparação entre os dois casos não tenta equiparar moralmente, nem hierarquizar a legitimidade das forças israelenses e do Hamas enquanto grupos armados. Não é uma comparação que busca estabelecer quem tem a razão no que diz respeito às causas do conflito e nem mesmo sobre quem comete as mais numerosas e graves violações nessa guerra. É uma comparação que busca demonstrar de maneira cristalina o que significa deixar de ser jornalista e cruzar a linha para tornar-se combatente, perdendo a proteção à qual o repórter deixa de ser civil e passa a ser um alvo legítimo, de acordo com o direito aplicável.
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