Política
Enxugando gelo?
Em menos de uma semana, a Operação Shamar prende quase 400 assassinos e agressores de mulheres


A Lei Maria da Penha, que completou 19 anos no início de agosto, é reconhecida como uma das mais avançadas do mundo no enfrentamento à violência contra a mulher. Também neste ano, a Lei do Feminicídio alcançou uma década, um importante marco no combate aos assassinatos motivados por razões de gênero. Além desses dois importantes regramentos jurídicos, o Brasil ainda conta com outros dispositivos voltados à proteção da população feminina, como as leis Carolina Dieckmann e Mariana Ferrer. Mesmo com todo esse aparato legal, o País segue acumulando episódios de violência extrema contra meninas e mulheres, como nos recentes casos do espancamento de Juliana Garcia – que levou 61 socos do então namorado, o ex-jogador de basquete Igor Cabral, dentro do elevador de um condomínio residencial em Natal – e do assassinato de Bárbara Magna da Silva, no Rio de Janeiro, morta a facadas pelo ex-companheiro.
São casos como esses que fazem do Brasil o quinto país do mundo onde mais se matam mulheres. Em média, quatro brasileiras são vítimas de feminicídio a cada dia. Ao todo, foram registradas 1.492 ocorrências do gênero em 2024, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), que divulgou seu anuário estatístico no fim de julho. Os números vêm crescendo desde 2020, na contramão da tendência de queda das mortes violentas intencionais (MVI), que somaram 44.127 homicídios no ano passado.
Enquanto as MVI apresentaram redução de 5,4% em 2024, na comparação com o ano anterior, os feminicídios aumentaram 0,7%, e as tentativas de feminicídio registraram um salto de 19%, totalizando 3.870 casos. Em parte, observam especialistas, esse crescimento se deve à maior visibilidade do tema. Se, antes, muitas delegacias registravam os assassinatos de mulheres como homicídios comuns, hoje há uma preocupação maior em verificar se o crime foi motivado por menosprezo à condição feminina ou cometido em contexto de violência doméstica ou familiar.
Na contramão da tendência de redução das mortes violentas, o número de feminicídios cresce pelo quinto ano consecutivo no País
“Ainda que o aumento dos feminicídios, porcentualmente, não tenha sido tão expressivo, chegamos ao maior número absoluto da série histórica. O crescimento pelo quinto ano consecutivo não é um fato isolado: vem acompanhado do avanço de outros indicadores de violência contra mulheres, como perseguição, violência psicológica e descumprimento de medida protetiva de urgência. Na maior parte das vezes, o feminicídio é o ato final de uma escalada de violência”, afirma Isabella Matosinhos, pesquisadora do FBSP. “Isso indica que estamos falhando nas políticas de prevenção.”
Dois terços das vítimas eram negras, 70,5% tinham entre 18 e 44 anos, e 64,3% foram mortas dentro de casa, revela o anuário do FBSP. Oito em cada dez foram assassinadas por parceiros ou ex-companheiros. Quase a totalidade dos autores (97%) são homens. “Sabemos que a violência contra a mulher não atinge apenas as pobres e pretas, mas esse grupo é o mais vulnerável, até pelas barreiras para acesso às políticas públicas. Faltam creches, escolas em período integral e segurança nas comunidades onde elas vivem”, enumera Izabel Santos, coordenadora do Centro das Mulheres do Cabo, entidade de referência em Pernambuco, com mais de 40 anos de atuação no combate à violência de gênero.
A ativista cita o exemplo de Cabo de Santo Agostinho, na Região Metropolitana do Recife. O município é o quinto mais violento do Brasil, apesar de abrigar o Porto de Suape, um importante complexo industrial e um dinâmico polo turístico. “Quando a gente olha o que essas empresas estão oferecendo, muito pouco é voltado para as mulheres, que continuam no subemprego, na informalidade. Seus filhos são presas fáceis para o tráfico de drogas. A violência contra a mulher mistura-se com a violência urbana.”
Proteção. Sem o amparo efetivo do Estado, as vítimas voltam a se expor aos agressores por dependência financeira, observa a secretária Estela Bezerra – Imagem: Redes Sociais e Wilson Dias/Agência Brasil
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025 aponta aumento nos casos de estupro, violência psicológica e stalking (ver gráfico na pág. 21). Ao todo, foram concedidas 555 mil medidas protetivas, alta de 6,6% em relação ao ano anterior, e 101,7 mil dessas medidas foram descumpridas pelos agressores, um crescimento de 10,8%. Dados do Ministério da Mulher também revelam um cenário alarmante: de janeiro a julho deste ano, o Ligue 180 – canal telefônico exclusivo para atender a população feminina – registrou 594 mil atendimentos, incluindo 86 mil denúncias de violência física, 24 mil de violência psicológica e 3 mil de violência sexual. Quatro em cada dez denunciantes eram mulheres negras, e 47,6% dos suspeitos eram parceiros ou ex-companheiros das vítimas.
Para frear essa escalada de violência, o governo federal vem realizando uma série de ações, como a Operação Shamar, iniciada em 1º de agosto e prevista para seguir até setembro. Apenas nos primeiros seis dias, 387 autores de feminicídio e agressores foram presos – e mais de 300 medidas protetivas de urgência foram concedidas a mulheres sob ameaça.
A iniciativa faz parte da campanha Agosto Lilás, do Ministério das Mulheres, em parceria com a pasta da Justiça e a Polícia Federal. Apesar do elevado número de prisões, o foco está na prevenção, não na repressão, explica Estela Bezerra, secretária nacional de Enfrentamento à Violência. “Antes do feminicídio, as vítimas costumam passar por várias etapas de violência. Por isso é tão importante ensinar as mulheres a reconhecê-las e denunciá-las antes que seja tarde”, diz. Esse é, por sinal, um dos motes da atual campanha: “Não deixe chegar ao fim da linha. Ligue 180”.
“No Brasil, não há uma tradição de formular políticas preventivas”, lamenta Lagreca, da UFMG
Estela Bezerra enfatiza, porém, que a responsabilidade não pode recair sobre os ombros das vítimas, e o Estado brasileiro tem falhado na proteção delas. “Se uma mulher é espancada e não recebe uma medida protetiva adequada, se ela não tem condição de transferir o trabalho e a escola do filho, ela fica vulnerável. É preciso ampará-la, de fato, com auxílio-moradia e outros instrumentos, para que não precise mais se expor ao agressor”, afirma a secretária. “Do mesmo modo, é necessário monitorar e colocar limites nesse agressor, para que ele não cometa o feminicídio. Não podemos falhar nem numa ponta nem na outra. Infelizmente, parte da sociedade é conivente, não trata o agressor como um criminoso, inclusive alguns policiais e juízes.”
Um caso ilustrativo ocorreu no início deste mês no Distrito Federal. Uma mulher foi covardemente espancada pelo marido, o empresário Cleber Borges, durante quatro minutos dentro de um elevador. Inicialmente, a Polícia Civil descartou indícios de tentativa de feminicídio. O delegado responsável pela investigação, Marcos Lourdes, chegou a declarar à imprensa local que o empresário “interrompeu” as agressões e, portanto, não teria intenção de matar. “Ele poderia pisar, pular em cima dela, continuar socando”, enumerou Lourdes, com espantosa frieza e naturalidade.
“O Estado precisa pensar na formação dos profissionais que atendem mulheres vítimas de violência e exigir o cumprimento de protocolos obrigatórios. Há uma série de coisas que a lei, por si só, não é capaz de resolver, mas a resposta estatal precisa ser firme e coerente”, salienta Amanda Lagreca, doutora em Sociologia e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, contratada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública para analisar os dados do Anuário.
Fonte: FBSP/Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2025
Lagreca ressalta que, entre 2023 e 2024, ao menos 122 mulheres foram vítimas de feminicídio mesmo com medidas protetivas. “O governo federal tem a bandeira de intensificar a fiscalização, inclusive com a imposição de tornozeleiras eletrônicas aos agressores. É uma estratégia válida, mas não suficiente. Quem está sob proteção já sofreu alguma violência”, observa. “No Brasil, não há uma tradição de formular políticas preventivas.”
A advogada Sueli Amoêdo, que coordena as plataformas Justiceiras e Virada Feminista, destaca a falta de investimentos, o que pode comprometer, inclusive, a aquisição de tornozeleiras eletrônicas na escala necessária. “Muitos municípios nem sequer possuem uma viatura da Patrulha Maria da Penha. Não é algo caro, mas poucas prefeituras investem”, observa. “Faltam delegacias 24 horas, com atendimento especializado. Falta incluir o combate à violência de gênero no programa das escolas. Fica tudo na aplicação da lei, que acaba com a pecha de ser ineficiente, mas não é. O grande gargalo está nas cidades menores, que não têm estrutura para proteger essa população.”
Segundo Estela Bezerra, já está em fase final um programa interministerial para incluir, na grade curricular das escolas, uma disciplina específica sobre a violência contra a mulher. A secretária reforça ainda a importância de denunciar todo e qualquer ataque violento, seja nos órgãos municipais, estaduais ou do Judiciário, seja pelos canais disponíveis 24 horas pelo governo federal: a Central de Atendimento à Mulher, pelo número 180, e o WhatsApp (61) 9610-0180. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enxugando gelo?’
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