Do Micro Ao Macro
Ventos prósperos
Capacitação de fornecedores locais das eólicas impulsiona negócios e transforma o cenário na Serra do Araripe


Na Vila do Mel, em Betânia do Piauí, o cheiro dos temperos se mistura ao vento quente que sopra da Caatinga. Entre panelas fumegantes e o vaivém de clientes, a cozinheira Eliene Delmondes Ferreira comanda o restaurante Sabor Sertanejo, ponto certo para trabalhadores e moradores da região. Até pouco tempo, havia apenas um fogão simples, algumas panelas e o sonho de transformar sua habilidade em sustento. A força dos ventos – e das usinas eólicas instaladas na Serra do Araripe – fez o negócio deslanchar.
A trajetória de Eliene começou na portaria de uma escola, onde o trabalho rotineiro se misturava ao aprendizado com merendeiras e nutricionistas. Das conversas nos intervalos surgiram ideias e receitas. A distância dos grandes centros e a vida no sertão não diminuíam seu desejo de empreender. Em 2016, Eliene instalou seu restaurante no povoado de Cara Branca, zona rural de Ouricuri, em Pernambuco. No início, atendia trabalhadores da Votorantim Energia, mesmo sem uma estrutura adequada. A cozinha improvisada mantinha-se graças ao esforço diário. A virada viria anos depois, com a chegada de novas obras à região e, com elas, o convite para participar de um programa de qualificação de empreendedores.
Durante a pandemia, a demanda das empresas de energia manteve o negócio de pé. Com o avanço das eólicas, veio a orientação para realizar melhorias. Uma nutricionista passou semanas no restaurante, reorganizou o cardápio e implantou controle de estoque. O espaço foi reformado, ganhou equipamentos industriais e se formalizou com o apoio de especialistas em gestão e contabilidade. Hoje, Eliene emprega duas funcionárias e conta com a ajuda da família no dia a dia. O restaurante serve diariamente os funcionários das usinas e trabalhadores de outras empresas que chegaram com a transformação econômica da região. “A qualificação abriu novas portas. Melhoramos o serviço e atraímos mais movimento”, comenta.
Analistas lembram que, em cenários como esse, o acesso a linhas de crédito e programas de capacitação pode ser decisivo. A rede do Sistema Nacional de Fomento, coordenada pela Associação Brasileira de Desenvolvimento, foi criada justamente para ampliar o alcance de pequenos negócios em áreas afastadas dos grandes centros, oferecendo condições para que iniciativas locais se consolidem.
A Serra do Araripe estende-se pela divisa entre Pernambuco, Piauí e Ceará. Por décadas, a distância das capitais e a precariedade das estradas mantiveram a região à margem dos investimentos. O acesso restrito limitava o escoamento da produção agrícola e inibia novos negócios. As comunidades, dependentes da agricultura, enfrentavam insegurança hídrica e alimentar, baixa escolaridade, escassez de renda e falta de documentação básica, o que dificultava o acesso a programas sociais. O avanço das secas, cada vez mais longas e severas, agravou ainda mais as dificuldades.
A mudança começou com a chegada das empresas de energia. O vento constante da Serra do Araripe colocou a região no mapa da geração renovável. Empresas como a Auren Energia – formada pela Votorantim em parceria com o fundo canadense CPP Investments – expandiram sua presença, somando hoje 12 complexos eólicos, hidrelétricas e usinas solares.
Além de investir em infraestrutura, a companhia estruturou programas sociais para ampliar os benefícios à população. Entre eles, um destinado ao desenvolvimento de fornecedores locais, que teve impacto direto na ativação do empreendedorismo, como relatou à reportagem de CartaCapital a gerente-executiva de Sustentabilidade da Auren, Raquel Leite.
“Buscamos formalizar e qualificar empreendedores para atender às demandas das obras dos complexos”, contou. A iniciativa mapeou negócios de alimentação, hospedagem, transporte, papelaria, material elétrico e de construção. O critério foi estar na área de influência dos novos empreendimentos e atuar nos setores definidos. Foram inscritas 72 empresas de municípios como Araripina (PE), Santa Filomena (PE), Ouricuri (PE), Betânia do Piauí (PI) e Curral Novo do Piauí (PI).
As capacitações incluíram gestão administrativa, adequação sanitária, controle de estoque, precificação e atendimento. Em casos específicos, como o da cozinheira Eliene Ferreira, houve consultorias personalizadas para adequação às normas e conquista de novos clientes corporativos.
Por anos, a região ficou à margem dos investimentos e das políticas públicas.
Entre os exemplos de impacto está o projeto Mulheres Fortes, de Betânia do Piauí. A iniciativa reúne perto de 36 agricultoras da Associação de Pequenas Produtoras Rurais da Serra do Inácio, que decidiram transformar a mandioca cultivada na roça em fonte de renda estável. Com apoio técnico e cursos de beneficiamento, gestão e comercialização, elas passaram a produzir e vender farinha, sequilhos, bolos, chips e petas.
Em 2020, mesmo durante a pandemia, o grupo produziu mais de 170 toneladas de mandioca e ampliou as vendas para mercados locais e programas de merenda escolar, alcançando um faturamento bruto próximo a 100 mil reais. As vendas incluíram 2,4 mil quilos de farinha, quase 2 mil pacotes de peta, 462 potes de sequilhos e centenas de pacotes de bolinhos e chips, movimentando o comércio local de alimentos processados. Além disso, o acesso a novos canais de distribuição reduziu a dependência da produção agrícola, garantindo fluxo de receita durante todo o ano. O trabalho coletivo e a formalização abriram novos canais de venda, com produtos embalados e rotulados seguindo normas sanitárias. Hoje, a meta é expandir a produção de biscoitos e conquistar clientes em outras regiões.
Exemplos como esse mostram que grupos produtivos podem ganhar ainda mais fôlego quando conectados a instrumentos de crédito e apoio técnico do Sistema Nacional de Fomento. A rede, articulada pela ABDE, oferece microcrédito, garantias e capacitação que ajudam a ampliar canais de venda e dar escala à produção.
Projetos como o das Mulheres Fortes ajudaram a dinamizar a economia regional. A circulação de recursos e o fortalecimento dos serviços chamaram a atenção do Poder Público. Municípios que, por décadas, não recebiam investimentos estruturantes passaram a ser incluídos em planos estaduais e federais. Estradas vicinais foram recuperadas, escolas reformadas e projetos de abastecimento de água ganharam prioridade.
O fluxo maior de trabalhadores e visitantes estimulou melhorias nos postos de saúde, na iluminação pública e no transporte. Jovens que antes deixavam a região em busca de emprego passaram a encontrar oportunidades perto de casa, nos setores de energia, comércio ou serviços. Restaurantes, pousadas e oficinas surgiram para atender à nova demanda. O Sabor Sertanejo deixou de ser só um ponto de alimentação para se tornar prova de que o vento que move turbinas pode também soprar mudanças duradouras.
Especialistas avaliam que a integração entre investimentos privados e a rede pública de fomento pode definir o futuro de regiões como a Serra do Araripe. A articulação com o Sistema Nacional de Fomento, sob coordenação da ABDE, é vista como caminho para que os ganhos trazidos pela energia renovável se convertam em políticas duradouras de crédito e desenvolvimento regional.
E, na Chapada do Araripe, onde a vegetação retorcida da Caatinga encontra os imensos paredões de pedra, negócios locais mostram que, com as parcerias certas, um prato servido ou um pacote de farinha podem fazer parte de uma cadeia capaz de redesenhar um território inteiro. Tudo sob o olhar atento – e a bênção – de Padre Cícero, ali de Juazeiro do Norte, vizinho desta terra de ventos e boas histórias. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ventos prósperos’
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