Mundo

assine e leia

Caminho livre

Com o campo popular rachado e sem Evo Morales nas cédulas, a direita tem sua maior chance de retornar ao poder após 20 anos

Caminho livre
Caminho livre
Dobradinha? O empresário Samuel Medina, de centro-direita, e o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga lideram as intenções e voto, e podem excluir a esquerda do segundo turno – Imagem: Redes Sociais/Doria Medina e Aizar Raldez/AFP
Apoie Siga-nos no

Expressando-se em quéchua, uma das línguas oficiais da Bolívia, ao lado do aimará e do espanhol, Andrónico ­Rodríguez, da Alianza Popular, abriu sua participação no penúltimo debate antes das eleições presidenciais, marcadas para o domingo, 17. Ao usar o idioma, o candidato buscou enaltecer suas­ raízes indígenas, campesinas e sindicais. O senador de 36 anos, oriundo do Trópico de Cochabamba, mesma região de Evo Morales, de quem era próximo até recentemente, é a principal esperança para impedir um fracasso que a esquerda nacional não experimenta há 20 anos.

Rodríguez apela aos indecisos – entre 10% e 15% do eleitorado, segundo diferentes pesquisas –, mas sabe que a missão é difícil, quase impossível. Sem o nome de Evo nas cédulas e após Luis Arce abrir mão da reeleição, a direita boliviana nunca esteve tão próxima de retornar ao poder. Segundo as últimas pesquisas autorizadas antes do pleito, realizadas pelos institutos Ipsos–Ciesmori e Captura Consulting, o empresário Samuel Doria Medina, da Alianza Unidad, lidera com 21,2% e 21,6%, respectivamente. É seguido de perto pelo ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga, da coalizão Libre, que aparece com 20% em ambos os levantamentos. Caso a tendência se confirme no próximo domingo, o segundo turno, marcado para 19 de outubro, será disputado por dois candidatos do campo conservador.

Desde 2005, o Movimento ao Socialismo (MAS), partido de esquerda liderado por Evo por três mandatos (2006–2019) e, depois, por Arce (2020–2025), venceu todas as eleições presidenciais ainda no primeiro turno. Agora, o candidato oficial da legenda, o ex-ministro Eduardo­ del Castillo, aparece apenas na sétima colocação entre nove concorrentes. O desempenho pífio é atribuído não só à grave crise econômica do país, marcada por escassez de produtos básicos e uma inflação anual de 24,8% até julho, mas também à implosão do grupo político.

Os favoritos nas pesquisas defendem anistia aos golpistas de lá e a retomada do projeto neoliberal

Do campo popular, Andrónico é o mais bem posicionado nas pesquisas: aparece em quarto lugar (7,2%) na sondagem da Captura Consulting e em quinto (5,5%) na Ipsos–Ciesmori. Na reta final da campanha, ele tenta neutralizar o movimento de apoiadores de Evo Morales pelo voto ­nulo. Impedido de concorrer, o ex-presidente questiona a legitimidade do processo eleitoral e se diz vítima de perseguição judicial, incluindo uma ordem de detenção por não comparecimento a audiências de um processo no qual é acusado de estupro de uma adolescente – ele nega a acusação.

“Adoraria que Evo fosse candidato, mas não anularei meu voto e estarei com Andrónico”, afirma a senadora ­Patrícia Arce, alvo da fúria de uma milícia de extrema-direita que, em 6 de novembro de 2019 – quatro dias antes do golpe que derrubou o governo de Evo Morales –, a agrediu, cortou seu cabelo à força e a cobriu de tinta vermelha.

O comportamento do eleitorado identificado com Evo pode definir os rumos do primeiro turno, especialmente entre os beneficiados por políticas sociais que retiraram cerca de 3 milhões de bolivianos da pobreza nas últimas duas décadas. A drástica redução do analfabetismo, os investimentos em infraestrutura e a construção de quase 5 mil escolas também fazem parte do legado desse período. “Lula apoiou Dilma ­Rousseff e ­Fernando Haddad no Brasil. Rafael ­Correa esteve com Andrés Arauz e ­Luisa González no Equador. Cristina Kirchner fez o mesmo com Alberto ­Fernández e Sergio Massa na Argentina”, observa ­Susana Bejarano, candidata ao Senado pela Alianza Popular. “Aqui, vive-se uma situação inédita: aquele que deveria nos respaldar se nega a fazê-lo, tornando a campanha muito difícil. Com a esquerda dividida, abre-se caminho para uma direita que, embora não esteja unida em uma única candidatura, compartilha a mesma visão de país.”

Outro complicador é a má avaliação do governo Arce, que figura entre os presidentes mais impopulares da América do Sul, com apenas 25% de imagem positiva, segundo levantamento da Consultoria Opinião Pública. Os diversos problemas causados pela inflação, pela escassez de combustíveis e pelos constantes bloqueios promovidos por opositores relegam o governista Eduardo del Castillo, ex-ministro da Justiça, a um papel irrelevante na disputa. “É uma gestão marcada pela ruptura com Evo, pela falta de governabilidade, pela má condução da economia e por alianças com os magistrados do Tribunal Constitucional Plurinacional. As pesquisas indicam que o MAS não chegaria nem a 3%, o que coloca em risco a própria condição jurídica da sigla”, adverte o jornalista Jorge Añez.

Tiro no pé. A campanha pelo voto nulo, puxada por apoiadores de Evo, sabota a esquerda – Imagem: Jorge Bernal/AFP

Diante do novo cenário, Medina e ­Quiroga – que vinham sendo tratados como cartas fora do baralho após desempenhos pífios em eleições recentes – voltam a ganhar destaque. Ambos integraram governos amplamente rejeitados pela população entre 1985 e 2005, quando a esquerda quebrou a hegemonia conservadora. “Samuel e Tuto representam um passado rejeitado que nos levou ao socialismo do século XXI. Há muitos indecisos e um voto oculto de eleitores que, nas últimas duas décadas, apoiaram o MAS e agora estão decepcionados. É difícil prever como expressarão esse descontentamento, mas estamos diante do fim de um regime estatista e autoritário”, projeta o deputado Miguel Roca, aliado do presidenciável Manfred Villa, ex-prefeito de Cochabamba – mais um nome do campo conservador que promete, entre outras coisas, prender Evo e baixar o preço da gasolina para 5 bolivianos (cerca de 4 reais).

Há muito em jogo, como a definição do modelo de exploração das cobiçadas reservas de lítio, terras-raras e outros minérios estratégicos do país. Com uma vitória da direita, é possível que a Bolívia retome a agenda privatista dos anos 1990. “Os bolivianos estão cansados da falta de dólares e da escassez de combustíveis. Por isso, as ideias do liberalismo voltam a ter eco. Tuto sabe que será necessário recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial para resolver a crise”, afirma José Ormachea, deputado e candidato ao Senado pela chapa de Quiroga.

Jorge “Tuto” Quiroga era vice-presidente quando eclodiu a Guerra da Água em 2000, um levante popular que barrou a privatização do sistema de abastecimento de Cochabamba após intensos confrontos nas ruas. Hoje, o candidato tem ao seu lado figuras controversas, como Branko Marinkóvic, ex-presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, conhecido por defender ações separatistas e se alinhar a alas radicais da direita latino-americana.

Antes de implodir, o esquerdista MAS parecia imbatível. Venceu todas as eleições desde 2005

“Temos três conflitos históricos: regional, étnico e de classe. No oriente, prevalecem a abertura de mercado, a competitividade e a modernidade. No ocidente, ainda persiste uma visão comunitária, socialista, com forte presença sindical. Tudo isso repercute diretamente na política”, analisa o sociólogo Alejandro Guzmán.

O cenário idealizado pelos conservadores é um segundo turno entre Medina­ e Quiroga, além da conquista de dois terços da Câmara e do Senado. Todos convergem em uma pauta bem conhecida no Brasil: anistia para os que chamam de “presos políticos” – entre eles, a ex-presidente Jeanine Áñez e o ex-governador de Santa Cruz Fernando ­Camacho, condenados por envolvimento no golpe de 2019. Naquele episódio, 36 pessoas morreram em protestos contra o governo instalado após a destituição de Evo Morales. “A anulação desses processos será inevitável, pois estão sendo julgados por um crime que não existiu: golpe de Estado”, afirma José Ormachea.

Dificilmente o novo presidente da Bolívia será conhecido já no domingo 17. Para vencer no primeiro turno, é preciso obter mais da metade dos votos válidos ou, no mínimo, 40% com uma vantagem de 10 pontos porcentuais sobre o segundo colocado. “A tendência é que o voto anti-MAS vá para Tuto, enquanto os de centro se direcionem mais a Medina”, avalia Lourdes Montero, doutora em Ciências Sociais pela Universidade Autônoma Metropolitana, que não descarta a possibilidade de Andrónico surpreender e chegar à etapa decisiva. “Nesse caso, Medina seria um adversário mais perigoso – tem forte apelo na classe média.” •

Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caminho livre’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.

CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.

Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo