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Efeito rebote
Em reação às hostilidades de Trump, Modi busca estreitar laços com o Brasil e outros parceiros dos BRICS


Em 2019, o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, foi recebido pelo presidente norte-americano, Donald Trump, num comício que reuniu 50 mil pessoas num estádio de Houston, no Texas. Trump se disse empolgado em receber “um dos maiores, mais devotados e mais leais amigos” dos Estados Unidos. No palco, o telão exibia um entusiasmado slogan: “Sonhos compartilhados. Futuro brilhante”.
Passados seis anos, Índia e EUA encontram-se agora no pior momento das relações bilaterais. Trump prometeu taxar, a partir de 27 de agosto, todas as exportações indianas para os EUA em 50%, o que fez do país de Modi o mais castigado pela guerra comercial, juntamente com o Brasil. A outrora estreita aliança entre os vaidosos e personalistas líderes de perfil nacionalista foi por água abaixo.
Não que Trump precise de um motivo para punir aliados como Modi – Canadá, Japão, Ucrânia e União Europeia dão mostras do desdém que tem sido dispensado gratuitamente a parceiros outrora inquestionáveis –, mas, no caso da Índia, o motivo é surpreendente: a Casa Branca quer impedir o governo indiano de comprar petróleo da Rússia, embora Washington continue fazendo trocas comerciais com Moscou.
Em post publicado em suas redes sociais, Trump acusou a Índia de comprar “enormes quantidades de petróleo russo”. Essas aquisições violariam o embargo comercial que começou a ser imposto pelos EUA e pela Europa contra a Rússia em 2014, quando Vladimir Putin anexou a Península da Crimeia, e que aumentou em 2022, com a invasão total da Ucrânia.
A ideia do garrote era levar os russos à falência, mas isso nunca aconteceu, porque diversos países violam o bloqueio, dentre os quais a Índia. “Eles não se importam com quantas pessoas na Ucrânia estão sendo mortas pela máquina de guerra russa”, disse Trump sobre os indianos.
Modi diz importar-se com a situação na Ucrânia. Na segunda-feira 11, chegou a conversar por telefone com o presidente Volodymyr Zelensky. Mas, de fato, o comércio entre Nova Délhi e Moscou atingiu 68,7 bilhões de dólares no último ano, o que representa um aumento de 580% em relação a 2021. A Índia importa da Rússia 63,8 bilhões de dólares por ano, sendo o petróleo o principal produto.
O governo Modi respondeu a Trump dizendo que as novas tarifas são “injustificadas e desarrazoadas”, além de hipócritas. Afinal, a “União Europeia teve um comércio bilateral de 67,5 bilhões de dólares com a Rússia em 2024”, o que inclui petróleo, fertilizantes, minerais, químicos, aço e ferro. E os EUA importam urânio e paládio, além de fertilizantes e produtos químicos russos, embora mantenham vivo o discurso do embargo total.
O Brasil conhece bem essa sensação de injustiça que a Índia experimenta agora, porque Trump impôs a mesma alíquota de 50% sobre vários produtos brasileiros, com base em argumentos que são majoritariamente políticos, tais como a exigência de anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro e de recuo nas ações judiciais contra as big techs. Estes se misturam a elementos de natureza econômica, como as queixas infundadas de um desequilíbrio na balança comercial, o incômodo com a popularização do Pix e a contrariedade com as articulações dos BRICS para abandonar o dólar como moeda de referência nas transações entre os parceiros do grupo.
Por isso, o presidente Lula telefonou para Modi na quinta-feira 7. Os dois líderes discutiram ações para contornar a hostilidade de Trump. O primeiro-ministro indiano havia estado em Brasília e no Rio de Janeiro em julho, quando veio para a cúpula dos BRICS, enquanto Lula havia visitado Nova Délhi, em setembro de 2023, no encontro do G20. A agenda bilateral deve ser acelerada daqui em diante, com uma visita do vice-presidente e ministro da Indústria e Comércio brasileiro, Geraldo Alckmin, programada para outubro, além de um retorno do próprio Lula à Índia no ano que vem.
Alckmin desembarca em Nova Délhi em outubro. Lula viaja no início de 2026
Essa busca ansiosa por novos mercados virou prioridade depois da guerra comercial deflagrada por Trump. Com os EUA protegidos por tarifas e a economia europeia em retração, é natural que o mercado asiático salte aos olhos do Brasil. “Não tem saída. Por necessidade, teremos de prospectar esses espaços”, afirmou a CartaCapital o diplomata Fausto Godoy, que serviu em 11 países asiáticos ao longo de 16 anos, incluindo a chefia da embaixada brasileira em Nova Délhi. Para ele, os empresários precisam agilizar esse movimento de transição. “Nesses anos todos, nós não prospectamos nem nossos vizinhos. Temos culpa de termos muitos ovos postos numa cesta só”, disse, em relação à ligação comercial com os EUA.
Para o diplomata, que hoje é professor de Relações Internacionais na ESPM, não se trata apenas de apostar nos BRICS ou na China, individualmente, mas de aprofundar relações também com Japão, Indonésia, Vietnã e outros países da Ásia, por meio de acordos bilaterais. “Os BRICS não estão maduros ou podem ser um exagero”, avalia Godoy, lembrando tanto do inchaço do grupo, que ganhou seis novos membros em 2024 e 2025, quanto da resistência que a iniciativa desperta em alguns setores.
Se, há seis anos, Trump e Modi estavam em lua de mel, em Houston, se abraçando num comício com 50 mil pessoas, hoje o que chama atenção é um mero telefonema de Lula, que faz o presidente indiano – um nacionalista religioso e conservador – bascular para o lado de um dos maiores expoentes da esquerda latino-americana, alçado a um papel de vanguarda na resistência às agressões da Casa Branca.
Lula e Modi “serão aproximados pelas contingências que se sobrepõem às particularidades ideológicas. Do ponto de vista econômico, essa aproximação é de todo interesse, porque o espaço para cooperação é enorme”, acrescenta Godoy.
De acordo com o Itamaraty, o Brasil buscará ampliar com a Índia a cooperação nos setores de comércio, defesa, energia, minerais críticos, saúde e inclusão digital, além de conversar sobre o Pix brasileiro e seu similar indiano, a UPI, sigla da Interface Unificada de Pagamentos, criada para atender uma população de 1,4 bilhão de indianos.
Quando anunciou as tarifas recordes contra a Índia, Trump disse que a economia do país estava “morta”. Só que o governo Modi vem entregando taxas de desenvolvimento superiores a 6% ao ano e espera dobrar a renda de sua população em uma década, o que pode abrir espaço para diversificar parceiros e diluir a dependência dos EUA, um país que se tornou imprevisível no segundo mandato de Trump. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Efeito rebote’
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