

Opinião
Segurança é prioridade
Brasileiros rejeitam proposta de trocar o botijão do gás de cozinha “cheio e lacrado” por sistema de recarga fracionada em pontos de venda


Em 94% dos lares brasileiros, a decisão sobre o gás de cozinha começa por uma palavra simples: segurança. Mais que o preço, mais que a marca, mais que qualquer outra variável, o que está em jogo é a certeza de que o botijão não vai colocar vidas em risco. Não é exagero. Quando falamos de gás, falamos de algo que aquece o café da manhã, cozinha o arroz do almoço e, no extremo oposto, pode destruir uma casa inteira em segundos.
Uma pesquisa do Instituto Locomotiva mostra que a grande maioria dos brasileiros demonstra insegurança diante da proposta da Agência Nacional do Petróleo de permitir o enchimento fracionado de botijões por marcas diferentes da gravada no vasilhame. Na prática, os brasileiros temem trocar o “cheio e lacrado” por um sistema no qual o consumidor leva seu botijão para abastecer quantidades fracionadas em pontos de venda.
O que para alguns pode parecer apenas uma mudança de logística, para a maioria significa desestabilizar a relação de confiança na quantidade e na qualidade compradas, confiança essa que foi construída em décadas de relacionamento com as marcas. Esse é um bom exemplo para desconstruir um mito comum, de que os brasileiros de menor renda só se preocupariam com preço. Embora o orçamento seja apertado, nas classes CDE o “custo do erro” também é maior: a compra de um produto de baixa qualidade pode representar um desperdício com consequências negativas para as famílias.
Esse raciocínio vale para um saco de feijão de qualidade ruim ou para um sabão em pó que não lava direito: em ambos os casos, as famílias de menor renda preferem recorrer a marcas em que confiam para evitar um produto que não entrega a qualidade que desejam, já que o orçamento pode não ser suficiente para comprar outro pacote de feijão ou outro sabão em pó naquele mês. O mesmo raciocínio vale para um botijão de gás, item de primeira necessidade, em que a confiança de evitar um vazamento, uma explosão ou um produto adulterado valem mais que o próprio preço.
A ideia de encher o botijão de forma fracionada desperta desconfiança imediata. A grande maioria teme adulterações, vazamentos e até explosões. Quando a compra é feita de forma fracionada, perde-se a referência do peso e da vedação. O deslocamento para abastecer também preocupa: 86% consideram perigoso circular pela cidade carregando um botijão, de forma improvisada, em ônibus, motos ou carros. Sem o lacre, dizem 87%, nem mesmo seria possível conferir se a recarga foi completa. Para 94%, sem o lacre e a marca responsável, não há a quem recorrer no caso de ocorrerem problemas.
Essa preocupação convive com outra realidade: o peso do gás no orçamento das famílias. O botijão de 13 quilos, que é a medida-padrão, representa um gasto significativo no mês, especialmente em regiões onde o preço é mais alto e a renda, mais baixa. É por isso que 93% dos brasileiros apoiam que o governo subsidie o botijão para quem mais precisa. O programa Gás para Todos, que deve garantir o abastecimento gratuito para 16,6 milhões de beneficiários do Bolsa Família, é visto como uma medida que amplia o acesso sem abrir mão da segurança, exatamente o equilíbrio que a população deseja. Mais que um benefício, é uma forma de garantir dignidade e afastar milhões de brasileiros da chamada pobreza energética, que ainda obriga 15% dos lares a recorrer à lenha ou ao carvão para cozinhar.
A confiança na marca também é parte central dessa equação. Para 97%, ela deve ser responsável por garantir a qualidade do gás, e 94% defendem que o nome da empresa continue gravado no botijão, assegurando a rastreabilidade. Esses elementos não são apenas símbolos, mas mecanismos concretos de proteção que permitem identificar a origem do produto e responsabilizar quem erra. Sem isso, a fiscalização perde força e o consumidor fica vulnerável.
No fim, a pesquisa mostra que o brasileiro sabe fazer contas que vão além do preço final. Para 82%, pagar um pouco mais é preferível a colocar a família em risco. A cozinha é o coração da casa, espaço de comida, conversa e afeto, e transformá-la em ponto de risco por uma economia duvidosa é, no mínimo, um contrassenso. A mensagem é clara: ampliar o acesso, sim, mas sem abrir mão do que realmente importa. •
Publicado na edição n° 1375 de CartaCapital, em 20 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Segurança é prioridade’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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