Amarílis Costa

Advogada, doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito USP, mestra em Ciências Humanas, pesquisadora do GEPPIS-EACH-USP, diretora executiva da Rede Liberdade.

Opinião

Da Tiazinha ao TikTok, o Brasil transformou crianças em produto

O País é pioneiro em criar modelos de negócio para explorar vulneráveis, e arcaico quando precisa aplicar seus próprios princípios

Da Tiazinha ao TikTok, o Brasil transformou crianças em produto
Da Tiazinha ao TikTok, o Brasil transformou crianças em produto
Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil
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(Em memória de Giselle Cristina dos Santos)

O vídeo do youtuber Felca sobre a adultização de crianças não trouxe novidade, mas devolveu à luz aquilo que, por conveniência, ficou guardado: a naturalização da erotização precoce como entretenimento e sua transformação em moeda de troca. Hoje, esse choque se espalha na velocidade do 5G, embalado pelo cálculo frio do algoritmo, que mede, precifica e rentabiliza cada segundo de atenção — mesmo quando essa atenção recai sobre corpos vulneráveis.

Se hoje a internet é autopista da violação simbólica, a TV aberta foi o seu laboratório fundador. O País que cantava Lua de Cristal também vendia “tamanquinhos da Tiazinha” para meninas de sete anos. Não era ingenuidade, nem confusão entre heroína mascarada e dominatrix. Era um projeto comercial deliberado: pegar símbolos e códigos do desejo adulto, embalá-los em papel colorido e vendê-los para crianças.

Quem cresceu nos domingos regado pela água da banheira do Gugu talvez tenha dificuldade de enxergar o problema. Afinal, era “normal” ver no palco jovens mulheres de biquíni, fantoches, personagens de humorístico, meia dúzia de cantores da moda de sunga e pochete, crianças dançando coreografias sexualizadas para uma plateia adulta e “celebridades-mirins” disputando atenção, audiência e contratos. Esse “normal” é o húmus no qual a banalização do mal floresce.

A legislação protetiva, já robusta com o artigo 227 da Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente, parecia existir apenas como peça decorativa. A TV explorava o fascínio infantil por heroínas, mas injetava no imaginário coletivo os códigos visuais do fetiche adulto.

Se Tiazinha era o fetiche explícito, as Paquitas operavam na sutileza. Figurinos curtos, maquiagem carregada, coreografias ensaiadas para agradar adultos e um requisito tácito: a branquitude como passaporte estético. O recado era claro — e cruel: meninas negras não pertenciam à corte. Racismo e sexismo, de mãos dadas, ensinando desde cedo quem poderia ser vista, desejada e celebrada. O documentário Pra Sempre Paquitas revela o custo desse castelo de purpurina: distúrbios alimentares, depressão e assédio.

Há quem diga “eram outros tempos”. Mas esses “outros tempos” já tinham Constituição e ECA. O que nunca houve foi coragem de colocar o interesse da criança acima do lucro. O Brasil é pioneiro em criar modelos de negócio para explorar vulneráveis, e arcaico quando precisa aplicar seus próprios princípios.

O que Felca escancarou é que a adultização não é fruto de lapsos morais ou de “outros tempos”. É uma cadeia de produção: captação (“descobrir o talento”), moldagem (vestir, maquiar, treinar para agradar), exposição (televisão, publicidade, agora redes sociais) e monetização (contratos, patrocínios, “brindes” licenciados). Hoje, o refinamento vem pelo algoritmo: quanto mais polêmica, mais pele, mais ambiguidade, maior o alcance. O desejo dos adultos é convertido em dado; o dado, em dinheiro.

O espetáculo que um dia exibiu Chacretes, Boletes e Panicats em moldes abertamente sexualizados agora ganha contornos púberes em contas de internet. Qualquer sala de estar pode virar palco; qualquer celular, vitrine. E, na vitrine, o que viraliza deixa de ser apenas “vídeo fofo” para se tornar capital de giro, explorando a exposição de crianças e adolescentes com a chancela implícita — e, muitas vezes, explícita — de seus responsáveis.

Meninas de 9, 10, 11 anos imitam coreografias e gestos de mulheres adultas, vestem-se e posam para a câmera como miniaturas de dançarinas, embaladas pela lógica do engajamento. A engrenagem é a mesma: on exposição como capital, o clique como moeda e o algoritmo como cafetão invisível, recompensando quem entrega mais visualizações.

A proteção integral prevista no art. 227 da Constituição impõe à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito e à liberdade de crianças e adolescentes, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O ECA, em seus arts. 5º, 17 e 18-B, garante a inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, protegendo imagem, identidade e autonomia infantil. O Código Penal, nos arts. 218 e 218-B, criminaliza a indução e a exposição de menores a conteúdos ou contextos de cunho sexual, inclusive por meios digitais.

Proteger a infância não é só impedir abusos evidentes: é desmontar a lógica que transforma meninas e meninos em produto, que normaliza a exploração estética e simbólica, que exclui e invisibiliza crianças negras, que alimenta o imaginário do desejo adulto. É proteger mulheres e meninas de um ciclo que as molda desde cedo para caber na fantasia alheia.

Revisitar Tiazinha, Paquitas, banheiras dominicais e todo o circo midiático que os produziu não é destruir memórias afetivas, é resgatar a infância sequestrada. Porque, no fundo, todo esse espetáculo foi sustentado por nossos aplausos. Aplausos que custaram o presente e o futuro de muitas meninas.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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