Mundo
Profecia realizada
Bukele, que nunca escondeu o sonho de se tornar ditador, agora tem o direito de disputar reeleições ilimitadas


Nayib Bukele, que em 2021 se apresentou nas redes sociais como “o ditador mais cool (legal) do mundo”, agora tem o direito de concorrer a quantas reeleições desejar. O privilégio foi concedido, na quinta-feira 30, pela Assembleia Nacional de El Salvador, onde o partido do presidente detém maioria absoluta. A reforma constitucional foi aprovada por 57 votos a 3. Com isso, ele ganha a oportunidade de colocar em prática todas as ameaças de viés autoritário que tem feito ao longo dos seis anos em que está no poder.
Desde que surgiu na política, Bukele diz não se preocupar com a pecha de ditador. A escalada autoritária ocorreu à luz do dia. Foi anunciada publicamente e apoiada pelo Judiciário, pelo Legislativo e por um massivo apoio popular, que o coroou com um poder sem paralelo na história do país. Sua trajetória é um dos exemplos mais bem-acabados do modus operandi da extrema-direita na atualidade: um líder populista elege-se democraticamente e, uma vez no poder, trabalha para subverter a democracia pelas regras formais do próprio sistema – até estabelecer uma ditadura de fato.
A degradação da democracia, nesses casos, conta com o apoio explícito ou com a complacência dos demais Poderes, todos cooptados. Da mesma forma, costuma ser sustentada por uma maioria popular seduzida por resultados de curto prazo que, no horizonte, minam todos os contrapesos republicanos, incluindo os partidos de oposição, a imprensa e as organizações da sociedade civil, todos ameaçados de extinção.
Bukele foi eleito pela primeira vez em 2019. Pela Constituição, deveria governar por cinco anos e deixar o cargo ao fim do mandato, uma vez que a reeleição era proibida à época. No entanto, em setembro de 2021, um Supremo dominado por juízes indicados por ele próprio autorizou que o presidente disputasse um segundo mandato consecutivo, conquistado nas urnas em 2024. Agora, com o fim desse segundo mandato se aproximando, a Assembleia Nacional aprovou o direito a reeleições ilimitadas.
A aprovação ocorreu no mesmo plenário que fora ocupado por tropas do governo em 2020. Na ocasião, soldados com uniformes camuflados, capacetes e fuzis invadiram a sede do Legislativo para forçar a Casa a autorizar a contratação de um empréstimo de 109 milhões de dólares junto ao Banco Centro-Americano de Integração Econômica.
O autoproclamado ditador salvadorenho é uma espécie de Pablo Marçal, influenciador digital brasileiro que tumultuou as eleições municipais de São Paulo em 2024. Na disputa, o goiano ficou conhecido por provocar e acusar sem provas seus adversários, chegando a ser atingido por uma cadeirada de um candidato rival durante um debate ao vivo na tevê, antes de abandonar sua curta vida partidária pela porta dos fundos. Bukele, ao contrário, prosperou. Relativamente jovem – hoje ele tem 44 anos –, o líder extremista salvadorenho destacou-se pela habilidade em manejar suas redes sociais. Com um visual dinâmico, marcado pelo uso de bonés, jaquetas e roupas da moda, ele firmou-se como um “millennial autoritário”.
Em seu primeiro pronunciamento como presidente na sede da ONU, em 2021, Bukele afirmou que “um par de imagens no Instagram tem mais impacto do que um discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas”. Pouco depois, atualizou sua biografia no antigo Twitter para “o ditador mais legal do mundo”, em vez de “presidente de El Salvador”.
Agora, uma vez realizado seu sonho ditatorial, ele tenta matizar seu discurso. Diante das críticas, afirmou nas redes sociais que “90% dos países desenvolvidos permitem a reeleição indefinida de seus chefes de governo, e ninguém se incomoda. Mas, quando um país pequeno e pobre como El Salvador tenta fazer o mesmo, de repente é o fim da democracia”.
A Assembleia Nacional também ampliou o mandato presidencial, de cinco para seis anos
A comparação descabida ignora que mandatos longos ou até mesmo ilimitados são comuns em sistemas parlamentaristas, como os da Alemanha e do Reino Unido, mas não no presidencialismo, regime predominante nas Américas. De forma semelhante, líderes de esquerda como Hugo Chávez, na Venezuela, e Evo Morales, na Bolívia, já recorreram à mesma manobra de Bukele, e foram acusados pela oposição de autoritarismo.
A receita de alterar as regras do jogo em benefício próprio, quando se está no poder e no controle da máquina, é algo comum. Fernando Henrique Cardoso agiu dessa mesma forma quando aprovou o direito à reeleição, no Brasil, em 1997, beneficiando, em primeiro lugar, a si mesmo.
No caso de Bukele, não foi só a reeleição. O salvadorenho ainda aumentou o tempo de mandato presidencial, de cinco para seis anos, e extinguiu o segundo turno. Além disso, alterou o calendário para que as eleições locais e nacionais sejam todas realizadas na mesma data. Trata-se de uma iniciativa para favorecer seus aliados, que passarão a pegar carona na campanha do presidente, beneficiados pela máquina pública.
A avalanche de mudanças só foi possível porque Bukele conquistou a confiança da maior parte da sociedade salvadorenha. O carro-chefe da construção desse modelo ditatorial foi a segurança pública. Em 2018, um ano antes de Bukele assumir, o país registrava 51 homicídios por 100 mil habitantes e era dominado por cartéis e facções. Segundo o governo, esse índice caiu para 1,9 por 100 mil atualmente (no Brasil, o índice foi de 22,1 homicídios por 100 mil em 2024, segundo o Atlas da Violência do Ipea).
A redução dos homicídios foi obtida, porém, a um elevado custo para a democracia, com a implantação de um Estado de exceção prolongado. Houve supressão massiva de direitos, detenções arbitrárias e execuções extrajudiciais, de acordo com denúncias de organizações de direitos humanos que monitoram o setor, a exemplo da Human Rights Watch.
O sucesso nacional do modelo truculento atraiu a aprovação do presidente norte-americano, Donald Trump, e a adoração da extrema-direita que, no Brasil, venera Jair Bolsonaro. Os EUA viram em Bukele um aliado para levar adiante sua política de deportações em massa. Trump chegou a repassar 5 milhões de dólares para que El Salvador recebesse imigrantes venezuelanos. A aliança com a Casa Branca fortaleceu Bukele internamente e blindou sua armação ditatorial, com a Assembleia Nacional e o Supremo, contra críticas internacionais que pudessem mudar os rumos em El Salvador. •
Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Profecia realizada’
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