Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

Farsantes expostos

A censura à Flipei em São Paulo desnuda o cinismo da extrema-direita na defesa da liberdade de expressão

Farsantes expostos
Farsantes expostos
Feira do livro na Flipei 2024. Foto: Divulgação
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A decisão da prefeitura de São Paulo de censurar a Festa Literária das Editoras Independentes, a Flipei, não é apenas grave e insuportável numa democracia. Ela também revela que o discurso da extrema-direita sobre a suposta defesa da liberdade de expressão é uma grande mentira.

Nesta semana, a festa programada na capital paulista foi abalada por uma carta, na qual a prefeitura justifica sua decisão de cancelar o evento com o argumento de que o local destinado – a Praça das Artes – deveria ser usado apenas para fins educacionais, não para atos “político-partidários ou ideológicos”. O comunicado é assinado pelo diretor-geral da Fundação Theatro Municipal de São Paulo, Abraão Mafra de Oliveira Lopes.

Curiosamente, trata-se do mesmo Theatro Municipal que abriu suas portas, em março do ano passado, para uma cerimônia em homenagem à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, mesmo com seu marido sendo processado por tentativa de golpe de Estado.

A Flipei ocorrerá em um novo palco. Ninguém vai calar um evento que reúne escritores, pensadores e ativistas na busca por reinventar o futuro. Mas os ataques sofridos pelos organizadores vão muito além da tentativa de silenciar uma festa literária. A censura deve servir de alerta para o que pode ocorrer se a extrema-direita voltar ao poder em Brasília, se avançar no seu controle do Legislativo, se ampliar sua participação em prefeituras de grandes metrópoles e em estados da federação.

A extrema-direita jamais se importou com a liberdade de expressão. Quando ataca o Judiciário, quer apenas o direito de mentir, difamar, desinformar e disseminar ódio sem qualquer restrição. Para os meus, a “liberdade”. Para o contraditório, a mordaça. Hoje sabemos que a mentira mata, o ódio alimenta a violência e a desinformação ameaça a democracia. Linguagem é poder, qualquer movimento político sabe disso.

Em 2023, o bilionário Elon Musk colocou nas redes sociais uma foto de um boné com a frase Make Orwell Fiction Again (Faça Orwell Ser Ficção de Novo), numa alusão ao lema de campanha de Donald Trump, Make America ­Great Again. Era um chamado para pôr fim às realidades distópicas retratadas nas obras do escritor George Orwell. Nelas, são denunciados os avanços do autoritarismo, a vigilância governamental e a erosão gradual das liberdades civis na sociedade contemporânea.

No livro 1984, Orwell delineia os contornos de um regime totalitário capaz de controlar os cidadãos por meio da propaganda, da desinformação e da vigilância constante. Deturpando o sentido original da obra, Elon Musk e representantes da extrema-direita passaram a comparar os atuais governos ocidentais e democráticos à opressão descrita pelo autor. Nesse raciocínio distorcido, eles estariam, supostamente, “libertando” a sociedade.

Na realidade, Musk é hoje o proprietário de uma das armas mais poderosas da nossa geração. Sua plataforma tem a capacidade de conectar indivíduos e criar um sentimento de comunidade, mas também pode ser o veículo de crimes atrozes. Assim que a aquisição foi concluída, houve uma explosão de intolerância em sua nova rede social. Nas 12 horas seguintes ao negócio de 44 bilhões de dólares, foram publicadas, em média, 4,7 mil mensagens de ódio por hora – mais de quatro vezes a taxa registrada nas 12 horas anteriores. O uso de expressões racistas saltou 400%.

Musk demitiu todos aqueles que propunham mediar essa violência e restituiu 62 mil contas que haviam sido banidas, inclusive perfis de neonazistas e de Donald Trump. Apresentando-se como um “absolutista da liberdade de expressão”, o empresário também desmontou a equipe que estava examinando a incorporação de questões éticas na elaboração dos algoritmos e no treinamento da inteligência artificial.

Tão preocupante quanto essas medidas foi ler os aplausos de Trump: “Eu amo a verdade”. Bom, sabemos que até esta frase é mentirosa.

Se há um projeto político autoritário por trás dessa ofensiva do uso da linguagem, que seja dado o nome correto aos fatos: crime. Se há um projeto de ganância financeira, que também seja dado o nome adequado: imoral.

A censura contra a Flipei não deve ser subestimada. Trata-se de um ataque à democracia, uma sinalização do caráter autoritário de um movimento político e uma evidência extra da ameaça que a arte significa para o projeto da extrema-direita. Hoje, com a decisão da prefeitura paulistana, a Flipei deixou de ser apenas um evento literário. Sua realização é, agora, um ato de resistência. Em jogo está a capacidade de mantermos os espaços cívicos, a fundação de qualquer democracia. •

Publicado na edição n° 1374 de CartaCapital, em 13 de agosto de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Farsantes expostos’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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