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O Brasil, as margens e o Centro
Se a periferia é aqui, que seja também daqui que se ensaie outro futuro


Como pode o Brasil, segunda maior economia das Américas e uma das maiores do mundo, continuar sendo classificado como periferia no sistema capitalista global? Essa contradição expõe o cerne de um arranjo internacional que não se organiza apenas em torno de dados econômicos, mas de estruturas de poder e dominação.
A ideia de “periferia” vem de teorias como a da dependência e a do sistema-mundo, formuladas por Wallerstein, Gunder Frank, Samir Amin e outros.
Nelas, o mundo capitalista é dividido em centro, semi-periferia e periferia. O centro concentra poder econômico, político, tecnológico — e define as regras do comércio e da diplomacia internacional. A periferia, por sua vez, fornece recursos, mão de obra barata e consumo. Essa condição estrutural não se altera automaticamente com o crescimento do PIB: o lugar no tabuleiro é determinado por vínculos históricos, políticos e econômicos de subordinação.
O Brasil ocupa uma posição ambígua neste sistema. Tem mercado interno expressivo, recursos naturais abundantes e capacidade produtiva relevante. Mas segue preso a uma lógica de exportação primária, dependência tecnológica e desindustrialização acelerada. A industrialização do século XX foi conduzida, em grande parte, por capital estrangeiro e moldada para atender interesses externos.
Apesar do avanço em alguns setores, contudo, o País não conseguiu romper com o ciclo de dependência tecnológica e financeira. O Brasil passou a exportar cada vez mais commodities – soja, minério de ferro, petróleo, carne –, enquanto importa itens com maior valor agregado.
Essa posição subordinada também opera por dentro. As periferias urbanas e rurais do país — marcadas pela ausência de serviços públicos e infraestrutura básica — tornaram-se laboratórios da exploração neoliberal. A informalidade, o consumo precário e a especulação imobiliária são formas recorrentes de acumulação. Multinacionais exploram essas brechas com pouco custo e muita margem.
Ao mesmo tempo, é nesses espaços que brotam experiências de resistência, criatividade e reorganização da vida: da cultura aos arranjos econômicos alternativos.
Esta coluna, Crítica da Razão Periférica, nasce da necessidade de olhar para essas margens — geográficas, sociais, econômicas — como centros de interpretação do mundo. A forma como o centro do capital trata o Brasil é ilustrativa. Durante o governo Trump, o país foi alvo de tarifas e barreiras comerciais, mesmo sob alinhamento ideológico. O esperado reconhecimento geopolítico nunca veio. O que se viu foi isolamento, erosão de parcerias estratégicas e reafirmação da condição periférica.
O imperialismo atual não precisa de tanques; opera por sanções, tratados, chantagens financeiras e controle das instituições multilaterais. O que está em jogo não é apenas a inserção comercial, mas a capacidade de decidir os próprios rumos.
Construir alianças com outros países fora do eixo central é estratégico. Iniciativas como BRICS, CELAC e UNASUL ainda são frágeis, mas apontam para a possibilidade de integração baseada em complementaridade e cooperação, e não em competição entre desiguais.
Sair dessa engrenagem exige mais do que crescimento: requer reconfiguração. Um projeto de soberania que vá além do discurso. Que fortaleça ciência e tecnologia, indústria, reforma agrária, planejamento de longo prazo. Que olhe para as periferias, internas e externas, não como problema, mas como ponto de partida.
A crítica da razão periférica é, antes de tudo, um chamado à consciência. É um modo de ver e de agir. É uma recusa ao papel passivo no tabuleiro global e uma afirmação das margens como lugares de potência.
Se a periferia é aqui, que seja também daqui que se ensaie outro futuro — mais justo, mais igual, mais solidário. Um em que o Brasil e tantos outros deixem de ser peças e passem a ser protagonistas.
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