

Opinião
O caso Preta Ferreira, a justiça tardia e o surgimento da Rede Liberdade
A criminalização da luta não é uma exceção: é um projeto. E a luta por justiça também precisa ser


Na última semana, a Justiça de São Paulo absolveu Preta Ferreira, Carmen Silva e outras lideranças do movimento por moradia de acusações que, desde o início, carregavam mais preconceito do que prova. A sentença confirma o que boa parte da sociedade civil organizada já dizia há anos: não havia crime. Havia perseguição. E havia um projeto, ainda em curso, de criminalização das vozes que ousam denunciar as estruturas excludentes da cidade, da política e do Estado.
Preta Ferreira passou 109 dias presa, sob uma denúncia que a acusava de extorsão simplesmente por atuar na organização de ocupações por moradia. Carmen Silva, referência nacional na luta por habitação digna, também foi alvo de um processo tão inconsistente quanto simbólico. A acusação foi baseada em depoimentos contraditórios, em interpretações distorcidas e, sobretudo, no preconceito estrutural que criminaliza a pobreza e as lideranças negras e periféricas.
Essas mulheres foram perseguidas não por violar a lei, mas por desafiar a lógica do abandono. Por denunciar o déficit habitacional que afeta mais de seis milhões de famílias brasileiras. Por dar rosto e voz a quem vive à margem. Por ocupar. Por organizar. Por existir como sujeito político diante de um Estado que ainda opera, em muitas frentes, como se o direito à cidade fosse privilégio e não um direito constitucional.
A decisão judicial que agora as inocenta é uma vitória. Mas também é um alerta. Ela chega com cinco anos de atraso, e depois de danos profundos — emocionais, reputacionais e institucionais, causados não apenas aos acusados, mas a toda a rede de movimentos por moradia. Justiça que tarda, num país como o Brasil, é muitas vezes uma forma disfarçada de punição. E enquanto Preta Ferreira esteve presa, a pauta da moradia perdeu uma de suas vozes mais combativas, e o Estado consolidou sua prática de intimidação judicial como método de controle.
Foi em meio a esse cenário que surgiu a Rede Liberdade. A prisão de Preta, em 2019, foi o estopim de uma articulação que reuniu advogadas populares, ativistas, comunicadores e defensores de direitos humanos de diferentes partes do Brasil. Um chamado à ação. Um esforço coletivo para garantir que casos como o dela tivessem visibilidade, suporte jurídico e uma estratégia coordenada de defesa e denúncia.
A Rede Liberdade nasceu como resposta à injustiça, mas também como projeto de futuro. Um projeto que entende que a luta por direitos exige mais do que indignação: exige organização. E que nenhuma liderança popular, indígena, negra, periférica ou dissidente deve enfrentar o aparato repressivo do Estado sozinha.
Desde então, temos atuado em casos emblemáticos de perseguição política, criminalização de movimentos sociais e violações de direitos em contextos diversos: contra indígenas que resistem à violência territorial, contra mães criminalizadas por lutar por justiça para seus filhos, contra jovens perseguidos por sua militância antirracista, ambiental, urbana. Em todos esses casos, o padrão se repete: uso seletivo do sistema de justiça para silenciar, intimidar, desmobilizar.
No caso de Preta Ferreira, o próprio juiz que proferiu a sentença de absolvição reconheceu que não houve intenção de obter vantagem ilícita, como afirmava o Ministério Público. Mais ainda: a sentença apontou que a denúncia nasceu da dúvida e do preconceito. Essa é uma constatação gravíssima — mas infelizmente comum. Quantas outras Pretas Ferreiras continuam sendo processadas, investigadas, caladas? Quantos líderes comunitários estão hoje sob ameaça, simplesmente por ousarem se organizar?
A vitória judicial de Preta e Carmen deve, portanto, ser comemorada com entusiasmo, mas também com consciência crítica. O Estado que as absolve agora é o mesmo que as prendeu. O sistema que hoje reconhece a ausência de crime é o mesmo que sustentou, por anos, a violência institucional como prática rotineira. A reparação é incompleta, mas é um passo necessário.
Para a Rede Liberdade, esse caso tem um peso ainda maior: ele é origem e razão. Foi ele que nos mobilizou. Foi por ele que estruturamos a ideia de uma rede de proteção, de incidência e de cuidado entre movimentos e profissionais do direito comprometidos com a democracia real. E é por isso que seguimos em ação.
Porque a criminalização da luta não é uma exceção: é um projeto. E a luta por justiça também precisa ser.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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