Mundo
Gremlins
Sohei Kamiya, o “Trump nipônico”, personifica a ascensão da extrema-direita no país


Durante 70 anos, o Japão viveu sob a hegemonia de um único partido – nacionalista e conservador –, típico da direita tradicional. O PLD, do atual primeiro-ministro Shigeru Ishiba, governou de maneira quase ininterrupta desde 1955, com dois breves soluços de alternância, em 1993–1994 e 2009–2012. O domínio da sigla era tão inabalável que o período foi certa vez apelidado pelo cientista político Junnosuke Masumi, da Universidade Metropolitana de Tóquio, de “sistema de um partido e meio”, pois nele a legenda dominante nunca precisou de ninguém – ou, no máximo, requeria apenas alguns poucos assentos de outra sigla, menor – para formar uma coalizão governista.
Na configuração mais recente, o PLD administrava o país em aliança com o centrista Komeito. O arranjo costurado entre as duas siglas em 1999 parecia destinado a perpetuar o “sistema de um partido e meio”, mas a última eleição legislativa nacional, realizada em 20 de julho, trouxe uma surpresa: a ascensão de uma nova sigla, de extrema-direita, povoada por uma mescla de militares da reserva, influencers do YouTube, xenófobos ultranacionalistas e propagadores de notícias falsas que prometem restabelecer um orgulho japonês perdido desde o fim da Segunda Guerra Mundial.
O Sanseito, ou Partido para a Participação Política, tinha apenas um assento no Senado, mas pulou para 14 na última eleição, enquanto o governista PLD só alcançou 47 das 50 cadeiras necessárias para manter a maioria. Com isso, a sobrevivência do governo Ishiba passou a estar ameaçada, não mais pelas forças políticas tradicionais, mas por uma legenda que tomou a cena de assalto pelo lado da extrema-direita, e cujo maior expoente é o deputado Sohei Kamiya, militar da reserva que faz sucesso no YouTube e adotou como bordão o “Japão primeiro”, para emular o slogan de campanha do presidente dos EUA, Donald Trump.
Kamiya, apelidado de “Trump japonês”, é o único deputado da sigla na Câmara. Quando ele conquistou a vaga, na eleição anterior, de outubro de 2024, a legenda ainda era vista como nanica e inofensiva. Mas o salto dado na disputa mais recente, para o Senado, demonstra que os planos do partido, de alcançar entre 50 e 60 cadeiras na próxima eleição não parecem ser um mero delírio megalomaníaco.
O Sanseito é uma dessas mutações contemporâneas ocorridas no campo conservador e nacionalista, de onde brotam, em várias partes do mundo, líderes cada vez mais radicais. No caso do Japão, o sucesso se deve, principalmente, aos eleitores mais jovens, insatisfeitos com os rumos dados ao país por uma elite política conservadora que se mantém no poder de forma praticamente inalterada desde 1955. Os novos expoentes dessa onda populista apresentam a estabilidade japonesa como um demérito e acenam para um eleitorado sonolento com a promessa de novas emoções, usando para isso uma linguagem jovem e provocativa, bem ao gosto da internet.
Segundo Céline Pajon, que estuda a política japonesa no Instituto Francês de Relações Internacionais, em Paris, a nova sigla “capta um eleitorado em ruptura com as elites tradicionais que penam para se renovar, e que não perceberam o sucesso desse partido se aproximando”. Para ela, a sigla tem claras características “nacionalistas, conspiracionistas e xenofóbicas”, a exemplo do que ocorre no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa.
Embora a chegada dessa onda ao Japão corresponda a um movimento internacional mais amplo, ela ecoa elementos próprios da política e da economia locais para fincar suas raízes. Um deles é o que cruza uma inflação de 3,7%, com um decréscimo de 2,9% nos salários, efeito percebido como desastroso por um eleitorado habituado à estabilidade, à previsibilidade e ao pleno emprego.
Youtuber, militar da reserva, o deputado mimetiza o slogan do MAGA
O Japão perdeu para a Alemanha, em 2023, o posto de terceira maior economia do mundo, e, em 2025, teve seu PIB ultrapassado pela Índia. Na sequência, o país foi acossado por uma postura agressiva de Trump, que determinou uma profunda revisão dos acordos comerciais entre os dois países. Em julho, o presidente norte-americano castigou os japoneses com alíquotas de 25%. Para que o porcentual fosse reduzido aos atuais 15%, o governo japonês teve de se comprometer a investir 550 bilhões de dólares na economia dos Estados Unidos e abrir o mercado para carros e produtos agrícolas do parceiro.
No campo interno, o país viu cair a produção de arroz, produto campeão de consumo nacional, após a onda de calor de 2023. A apelidada “crise do arroz” teve a ver com o clima, mas no discurso nacionalista do Sanseito foi debitada da conta do turismo excessivo, que estaria pressionando a estrutura interna, com 37 milhões de visitantes estrangeiros no ano passado. A imigração não é uma questão tão importante no Japão, em termos numéricos, quanto é para os EUA e a Europa. Ainda assim, a extrema-direita local usa os 3% de cidadãos não japoneses como bodes expiatórios de muitos dos problemas nacionais. O país de fato importou mão de obra menos qualificada para setores da economia que não encontram candidatos locais com facilidade, além disso, facilitou as regras para estrangeiros adquirirem imóveis, oportunidade aproveitada, sobretudo, por investidores chineses. O Sanseito realça as dificuldades de assimilação dos imigrantes à cultura local e extrapola o impacto na realidade para galvanizar o tradicional argumento ultranacionalista contra um inimigo externo, propondo em resposta uma abordagem securitária e de mão dura.
Ainda é cedo para cravar que o futuro político japonês cairá nas mãos da extrema-direita. Como Pajon explica, “o sucesso dos partidos populistas revela antes de mais nada um voto de protesto, mais do que uma verdadeira adesão às suas ideias”.
Ainda assim, a chegada na Ásia dos ventos extremistas não é livre de preocupações. O Japão, aliás, tem antecedentes trágicos de correntes ultranacionalistas que prometem restabelecer a glória perdida no pós-Guerra. O caso mais célebre talvez seja o do escritor Yukio Mishima, que, em 1970, tomou de assalto um quartel em Tóquio e fez um discurso aos militares, conclamando-os a agir para reerguer o país. Daquela vez, o apelo não foi ouvido e um Mishima frustrado cometeu haraquiri com uma espada samurai diante do fracasso do intento revolucionário. A ascensão do Sanseito, agora, não evoca nenhum desses elementos trágicos, mas faz, pela via do ressentimento, da paranoia e do engajamento fácil da internet, o mesmo caminho para atiçar um patriotismo ferido. •
Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Gremlins’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Extrema-direita da América Latina é subserviente e anti soberana, diz Lula
Por CartaCapital
Como a extrema-direita global usa a retórica da perseguição para desviar de investigações judiciais
Por RFI