Política
Cicatriz recente
O Brasil deixa o Mapa da Fome, mas a chaga pode reabrir facilmente, como prova o retrocesso nos anos Temer e Bolsonaro


O Brasil não faz mais parte do Mapa da Fome. O anúncio foi feito na segunda-feira 28, durante a 2ª Cúpula das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares, realizada em Adis Abeba, capital da Etiópia. “Hoje sou o homem mais feliz do mundo”, celebrou o presidente Lula nas redes sociais. Filho de um casal de lavradores analfabetos, ele passou boa parte da infância em um casebre sem água encanada nem energia elétrica em Caetés, no Agreste de Pernambuco, e costuma recordar que só teve a chance de saborear seu primeiro pão aos 7 anos de idade. “Espero que as pessoas se interessem em saber o que aconteceu no Brasil. Para acabar com a fome, é preciso colocar os pobres no orçamento. O dia em que os governantes fizerem isso, a gente vai resolver esse problema crônico da humanidade.”
Não há como deixar de celebrar o feito, mas a experiência recomenda cautela. “Celeiro do mundo” e recordista em desigualdade, o País sempre ocupou lugar de destaque na vexaminosa relação de nações assoladas pela subnutrição, divulgada desde os anos 1990 pela FAO, braço da ONU para alimentação e agricultura. Décadas antes, já se notabilizava por negar refeição digna a grande parte de seus cidadãos, como denunciou Josué de Castro, médico de formação, no clássico Geografia da Fome, lançado em 1946. Somente após Lula assumir a Presidência da República, em 2003, o problema passou a ser enfrentado como prioridade nacional. Ainda assim, levou mais de uma década para que os brasileiros superassem esse estigma, em 2014, no governo Dilma Rousseff, quando a nação foi excluída, pela primeira vez, da lista da FAO. Foi uma conquista efêmera. Com o desmonte da proteção social promovido por Michel Temer e Jair Bolsonaro, o Brasil não resistiu à crise da Covid–19 – e os açougues voltaram a ser frequentados por famélicos em busca de ossos.
A ferida começa a cicatrizar, mas ainda inspira cuidados. O País foi excluído do Mapa da Fome porque menos de 2,5% da população esteve sob risco de subnutrição no triênio encerrado em 2024. No entanto, o próprio relatório da FAO aponta que 7 milhões de brasileiros (3,4%) ainda padecem de insegurança alimentar severa, e outros 28,5 milhões (13,5%) enfrentam sua forma moderada. Esta classificação refere-se à incerteza sobre a capacidade de uma família garantir três refeições por dia. “O trabalho continua. Todos sabem da obsessão do presidente Lula para não deixar ninguém para trás”, afirmou o ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias, durante uma coletiva de imprensa online transmitida de Adis Abeba. “Uma estratégia é a busca ativa (de indivíduos em situação de vulnerabilidade). Em cada canto do Brasil, com visitas e cruzamentos de informações, buscamos chegar àqueles que ainda não alcançamos.”
Apesar da conquista, 7 milhões de brasileiros ainda padecem de insegurança alimentar severa, alerta a FAO
Na mídia, grande parte das análises costuma ressaltar que o Brasil retornou ao Mapa da Fome, principalmente, pelos efeitos da crise da Covid–19. De fato, isso ocorreu no triênio 2019–2021, período que coincide com a pandemia. Mas o economista Francisco Menezes, ex-presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e consultor de políticas públicas da ActionAid, vinha alertando desde 2017 – três anos antes de o Coronavírus fazer suas vítimas brasileiras – que o País corria sérios riscos de voltar à desonrosa lista da FAO. Não era preciso ter bola de cristal: o retrocesso já estava em curso. Envolvido na produção de um relatório sobre o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no Brasil, no âmbito da Agenda 2030, ele identificou diversos sinais de regressão social no País: o desemprego havia atingido dois dígitos, a queda da renda levou ao empobrecimento da população e as políticas sociais foram sendo sacrificadas pelo ajuste fiscal, sobretudo após a aprovação do Teto de Gastos Públicos.
“Houve até uma coincidência irônica. Em 2017, a ONU premiou o Brasil pelo seu programa de cisternas, que democratizou o acesso à água no Semiárido nordestino. O governo Temer recebeu aquele prêmio e, dois meses depois, fez um corte orçamentário radical que praticamente o inviabilizou”, lembra Menezes. “Este é só um exemplo. Cortaram recursos do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), os repasses para merendas escolares ficaram congelados por cinco anos. Portanto, não foi apenas a pandemia que levou a essa situação. Isso é fruto da omissão estatal nas políticas sociais e de combate à fome. Se os programas estivessem funcionando adequadamente, não acredito que tivéssemos visto aquelas cenas dramáticas de brasileiros na fila do osso ou de crianças dividindo ovo na escola.”
Fonte: Rede Penssan, com informações coletadas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/IBGE), da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE) e do Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Vigisan/Penssan). Todos os levantamentos consideram os indicadores da versão curta da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, com oito perguntas (Ebia 8), aplicáveis a qualquer tipo de domicílio brasileiro, o que permite uma melhor comparação dos dados de diferentes anos.
Silvia Zimmermann, coordenadora da Rede Penssan – responsável por dois inquéritos nacionais sobre insegurança alimentar no período da pandemia (Vigisan I e II), em meio ao apagão estatístico promovido pelo governo Bolsonaro –, destaca os impactos da desestruturação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan) e da extinção de instrumentos de controle social, como o Consea. “Assim como o SUS nos amparou na pandemia e evitou uma tragédia ainda maior, o Sisan poderia ter garantido condições muito melhores de atendimento à população vulnerável, caso estivesse realmente operando naquele período”, avalia. “Daí a importância de um compromisso contínuo do Estado brasileiro com a segurança alimentar, algo que transcenda as mudanças de governo, para que estejamos mais bem preparados diante de situações críticas e emergenciais, como as provocadas por eventos climáticos extremos.”
A FAO, convém ressaltar, adota metodologia que calcula a Prevalência de Subnutrição (Prevalence of Undernourishment) com base na disponibilidade de alimentos no país, na capacidade da população de adquiri-los e na média calórica consumida por um “indivíduo representativo”. Trata-se de um modelo simplificado, que permite a comparação entre mais de 140 nações. No caso brasileiro, outro indicador tem uso consolidado: a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), aplicada pelo IBGE desde 2003 e, mais recentemente, pela Rede Penssan nos inquéritos Vigisan. Baseada em entrevistas domiciliares, a Ebia classifica a insegurança alimentar em três níveis: leve, moderada e grave. O gráfico com a série histórica 2004–2023, reproduzido abaixo, mostra com clareza que o retrocesso no combate à fome começou antes da pandemia e se aprofundou após a chegada da Covid–19. O cenário só começa a se reverter de forma substancial em 2023.
Muito antes da pandemia, já havia claros sinais de regressão social, afirma Menezes
Especialistas atribuem esse avanço a um conjunto de iniciativas do governo Lula, que passa pelo reforço dos benefícios do Bolsa Família, pela redução do desemprego – 6,6% em 2024, a menor média da série histórica do IBGE, iniciada em 2012 – e pela retomada da política de valorização do salário mínimo. Mas não só. O Consea foi recriado, o Sisan reestruturado, os repasses ao Programa Nacional de Alimentação Escolar tiveram um reajuste de 36% em 2023, para recompor perdas das gestões anteriores, e o governo voltou a comprar alimentos da agricultura familiar. “Sair do Mapa da Fome é resultado do plano Brasil Sem Fome, que integra mais de 80 ações em programas de 24 ministérios – um trabalho árduo do governo federal, articulado com estados, municípios, organizações da sociedade civil e empresários comprometidos com a justiça social”, resumiu o ministro Wellington Dias durante o evento da ONU na Etiópia.
Restam, porém, vários desafios. Um deles é a recomposição dos estoques reguladores da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). “Não fosse a inflação dos alimentos, o resultado obtido pelo Brasil poderia ter sido até melhor. No segundo semestre de 2022, o País sofreu uma baixa no estoque de arroz e os preços dispararam. O governo Lula precisou correr para importar o produto, a um custo elevadíssimo, porque Temer e Bolsonaro tomaram a decisão equivocada de acabar com as reservas da Conab, vistas como instrumentos obsoletos. Bobagem, até o Japão voltou a armazenar grãos”, afirma Menezes. Outro ponto sensível é o alcance das políticas públicas sobre os grupos mais vulneráveis. “Os dados revelam que a prevalência da insegurança alimentar é muito maior nos domicílios chefiados por mulheres – sobretudo mulheres negras – e nas regiões Norte e Nordeste”, observa Zimmermann. “As ações do Estado precisam, de alguma forma, levar em consideração o peso das variáveis de gênero, raça e origem.” •
Publicado na edição n° 1373 de CartaCapital, em 06 de agosto de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cicatriz recente’
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