CartaCapital
O dobro ou nada
Bolsonaro força o confronto com o STF e agarra-se à boia da conspiração


Jair Bolsonaro ainda será julgado por tentativa de golpe, mas desde 18 de julho leva uma vida de condenado. Não pode sair de Brasília, está obrigado a ficar em casa à noite, nos fins de semana e em feriados, tem de ficar longe das redes sociais e de embaixadas. Em sua perna esquerda foi instalada uma tornozeleira eletrônica. É como se cumprisse pena em uma combinação dos regimes domiciliar e semiaberto. Caso viole as medidas cautelares impostas pelo Supremo Tribunal Federal, terá a prisão preventiva decretada. Escapou dela por um triz após dar um pulo no Congresso na segunda-feira 21. O filho Eduardo, deputado em autoexílio nos Estados Unidos, está com contas e bens bloqueados por ordem do STF, idem a esposa. E corre o risco de ir em cana preventivamente se voltar ao País. Eis o resultado da conspiração de pai e filho para que Donald Trump sapecasse sanções no Brasil.
“Negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o País ou invadi-lo” é crime previsto desde 2021 no artigo 359-I do Código Penal. Nome do ilícito: atentado à soberania nacional. Custa de 3 a 8 anos de cadeia. O tarifaço de 50% anunciado por Trump sobre as exportações brasileiras a partir de agosto enquadra-se no tipo penal. Isso porque o norte-americano agiu por obra do clã Bolsonaro. Na carta de 9 de julho ao presidente Lula, na qual comunicava a taxação, o republicano havia deixado clara a intenção de salvar o capitão no STF. Após as medidas cautelares contra o ex-presidente, nova investida ianque. O secretário de Estado, Marco Rubio, escreveu no ex-Twitter que o juiz Alexandre de Moraes e aliados no Supremo estavam proibidos de entrar nos EUA. Supõe-se que por aliados referia-se a “sete” dos outros dez togados. De fora da vingança, só André Mendonça e Kassio Nunes Marques, indicados por Bolsonaro, e Luiz Fux, o único, entre os cinco magistrados da Primeira Turma do Tribunal, a votar contra as cautelares estipuladas por Moraes.
Bolsonaro exibe a tornozeleira em ato no Congresso que quase o levou à prisão preventiva. O ex-presidente quer virar mártir – Imagem: Wilton Júnior/Estadão Conteúdo
As condutas de Bolsonaro e Eduardo, anotou Moraes na decisão da tornozeleira, “caracterizam claros e expressos atos executórios e flagrantes confissões da prática dos atos criminosos”. O despacho é de 17 de julho e respondia a pedidos formulados pela Polícia Federal, em 11 de julho, em um inquérito contra o deputado licenciado. Horas antes do despacho, o ex-presidente tinha dado entrevista no Congresso sobre o tarifaço e defendido a posição dos EUA, que, no fim das contas, visa salvá-lo. Para Moraes, o capitão admitiu atuação consciente e voluntária “na extorsão que se pretende conta a Justiça brasileira”. “Ousadia criminosa” sem limites e atitude “grave e despudorada”, salientou o juiz, para forçar “uma inexistente possibilidade de arquivamento sumário” da ação penal de Bolsonaro ou, então, a “aprovação de uma inconstitucional anistia” no Congresso. “Não há, portanto, qualquer dúvida sobre a materialidade e os delitos praticados” pelo ex-presidente por meio de “induzimento, instigação e auxílio – inclusive financeiro – a Eduardo”, afirmava a decisão.
O “zero três” está nos EUA desde fevereiro, conspira abertamente contra o sistema brasileiro de Justiça e tem se sustentado com dinheiro enviado pelo pai. Bolsonaro mandou 2 milhões de reais ao rebento, conforme admitiu à Polícia Federal em junho. O capitão depôs à PF em um inquérito aberto no STF contra o filho, em 26 de maio, a pedido do procurador-geral da República, Paulo Gonet. A investigação debruça-se sobre a conspiração do deputado. Este já estava em solo norte-americano ao requerer a licença do mandato em 18 de março e dar a seguinte justificativa: “Aqui, poderei focar em buscar as justas punições que Alexandre Moraes e a sua Gestapo da Polícia Federal merecem”.
No Chile, Lula se reuniu com Boric e outras lideranças em um evento em prol da democracia. Todos estão de olho na reação do brasileiro – Imagem: Ricardo Stuckert/PR
Após dois meses do autoexílio e de várias manifestações de Eduardo nas redes sociais, bem como de sinais emanados por autoridades dos EUA, Gonet apontou indícios suficientes de crimes do parlamentar. Um deles: às vésperas da instauração do inquérito, o “zero três” estivera com o deputado trumpista Cory Mills e coube a este abordar o tema “Bolsonaro” em uma audiência pública de 21 de maio do Congresso norte-americano com Rubio. Na audiência, o secretário disse que examinava aplicar em brasileiros a Lei Magnitsky, de retaliação financeira. A legislação foi invocada na terça-feira 22 por uma empresa de Trump, em um pedido dirigido a um tribunal da Flórida, onde move uma ação cujo alvo é Moraes. O pedido é para o processo ser encaminhado ao governo dos EUA e servir para embasar medidas contra Moraes e outros juízes do Supremo. Mais um revide pela tornozeleira.
No inquérito contra Eduardo, Gonet concentrava-se nos crimes de coação no curso do processo (artigo 344 do Código Penal, castigo de um a 4 anos de prisão), obstrução de investigação de organização criminosa (artigo 2 da Lei das Organizações Criminosas, pena de 3 a 8 anos) e tentativa de abolir o Estado Democrático de Direito (artigo 359-L do Código Penal, punição de 4 a 8 anos). A decisão do STF com as cautelares, tomada nesse inquérito, reorientou a mira. Moraes colocou “atentado à soberania” no lugar de “abolição violenta do Estado Democrático de Direito”. A propósito, o togado também autorizou a investigação do uso de informação privilegiada no mercado de câmbio. No dia do anúncio do tarifaço, houve negociações atípicas e bilionárias com dólar.
A licença de 120 dias de Eduardo venceu em 20 de julho. No retorno do recesso legislativo, em agosto, as faltas serão computadas. O deputado tem dito que não regressará ao Brasil, por temer uma prisão preventiva. Parlamentar que perde mais de um terço das sessões do ano pode ser cassado. Aconteceu em abril com Chiquinho Brazão, preso preventivamente desde 2024, acusado de ser um dos mandantes do assassinato de Marielle Franco.
Com o fim da licença, Eduardo voltou a receber o salário parlamentar de 46 mil reais. O PT, que pede a sua cassação no Conselho de Ética da Câmara, tenta agora ao menos uma suspensão, o que cortaria a remuneração por um tempo. “Não me intimidarei e não me calarei. Eu me preparei para este momento”, comentou o deputado no ex-Twitter, a propósito do bloqueio de suas finanças pelo STF. “Só irei descansar quando Alexandre de Moraes for punido”, prosseguiu, em defesa do impeachment do togado. O irmão Flávio protocolou na quarta-feira 23 um pedido de cassação do magistrado no Senado.
O governo Lula não se ilude em relação às reais chances de negociação do tarifaço
Degolar o juiz será uma das bandeiras da oposição na volta do Congresso. A outra, a anistia a golpistas. A turma vai ralar para compensar a limitação de Bolsonaro na cena pública. O capitão esteve à beira de uma prisão preventiva após ir ao Legislativo em 21 de julho, posar para fotos com a tornozeleira e fazer discurso a apoiadores. Seus movimentos foram transformados em conteúdo nas redes sociais de aliados. Moraes enxergou uma burla na proibição de usar as plataformas e cobrou-lhe explicações. Os advogados do capitão negaram e requisitaram ao STF que esclareça o que o cliente pode fazer. Na mídia e no mundo jurídico, há quem veja excesso em calar Bolsonaro.
E o governo? Lula não tem ilusão quanto a um acordo com Trump e prepara-se para o início do tarifaço em agosto. É o que diz um colaborador presidencial. Segundo esse auxiliar, não há nenhuma possibilidade de o petista sujeitar-se a Trump e enterrar a ação penal de Bolsonaro. Até porque o presidente não tem poderes legais para interferir no Judiciário e no Ministério Público. “O Trump não deixou margem para o Brasil. O custo político de atendê-lo seria maior do que o custo econômico do tarifaço”, afirma o colaborador. A única solução vista no Palácio do Planalto como capaz de evitar a taxação é uma ordem judicial nos EUA. Em 18 de julho, uma empresa importadora de suco de laranja brasileiro entrou na Corte de Comércio Internacional dos Estados Unidos contra a taxa de 50%. A Johanna Foods alega que perderá 68 milhões de dólares anuais e estima que o consumidor pagará 25% mais caro pelo produto.
Negociar a reversão do tarifaço beira o impossível, na visão do colaborador lulista. O vice-presidente Geraldo Alckmin, à frente das reuniões com o empresariado nacional e norte-americano, havia conversado com as duas principais autoridades comerciais dos EUA em março, após o anúncio de uma tarifa de 10%, e não adiantou. Mandou carta recentemente à dupla, depois do comunicado de taxação de 50%, e nada. A avaliação no Planalto é que Trump chamou o caso Bolsonaro para si e não dá ouvidos à equipe. O objetivo seria viabilizar a eleição do ex-presidente em 2026, para que o capitão afaste o Brasil da China.
Moraes aponta “ousadia criminosa” na chantagem bolsonarista. E, olha aí, Fux “matou no peito” – Imagem: Rosinei Coutinho/STF
Na hipótese de o tarifaço vingar, o Brasil dará o troco com a Lei da Reciprocidade Econômica, de abril. Uma legislação, aliás, proposta por um senador bolsonarista, Zequinha Marinho, do Pará. Não será, porém, uma retaliação generalizada contra importados made in USA. Será seletiva e pontual, segundo o auxiliar lulista. Duas mercadorias despontam como fortes candidatas a sanções. Uma são os remédios, cujas patentes podem ser quebradas. A outra, produções audiovisuais, como filmes e músicas, que seriam sobretaxados. Outra decisão do governo para lidar com a situação: acudir, com crédito, setores nacionais prejudicados. O espaço fiscal é, no entanto, estreito.
Na segunda-feira 21, Lula participou no Chile de um encontro em defesa da democracia, ao lado do anfitrião Gabriel Boric e dos mandatários de Colômbia, Espanha e Uruguai. Recebeu solidariedade nos bastidores pelo ataque de Trump, conforme um integrante da comitiva brasileira. Este acredita que Lula pode vir a tornar-se o anti-Trump no mundo. Na quarta-feira 23, o Brasil marcou posição em uma reunião da Organização Mundial do Comércio. Condenou a política tarifária dos EUA. Segundo o secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Itamaraty, Philip Gough, as tarifas tornaram-se “uma ferramenta na tentativa de interferir nos assuntos internos de terceiros países” e podem levar à guerra. O discurso foi apoiado por cerca de 40 países, incluídos os integrantes da União Europeia, que estudam tentar expulsar os Estados Unidos da OMC e aprovaram medidas de retaliações, caso Washington insista em impor altas tarifas ao bloco. •
Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O dobro ou nada’
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