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Os heterônimos de Celso Furtado

A trajetória do economista que escreveu sobre os temas mais diversos funde-se à própria história do Brasil

Os heterônimos de Celso Furtado
Os heterônimos de Celso Furtado
Legado intelectual. Furtado foi o grande teórico do subdesenvolvimento – Imagem: Acervo Arquivo Nacional
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O nome de Celso Furtado (1920–2004) é frequentemente associado ao intelectual que, nos anos 1950 e 1960, personificou como ninguém a esperança de que o Brasil poderia superar o subdesenvolvimento. Em uma época em que a questão do desenvolvimento nacional estava na ordem do dia, era quase impossível pensar o País sem passar pela obra do economista e historiador paraibano.

Mas Furtado é bem mais que isso. Como nos mostram Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes em Celso Furtado. Trajetória, Pensamento e Método, Furtado são vários, “como se fossem heterônimos de uma mesma pessoa”.

Grande teórico do subdesenvolvimento, que se revela na plenitude em Formação Econômica do Brasil, de 1959, ele foi também um intelectual que, sobretudo a partir dos anos 1970, no exílio francês, não hesitou em reavaliar as próprias perspectivas anteriores.

Foi ainda um intelectual “estadista”, nos termos dos autores. Trabalhou na Cepal, na Sudene, no Ministério do Planejamento do governo Jango e, no contexto da abertura democrática, no Ministério da Cultura do governo de José Sarney.

É esse personagem complexo que os autores se propõem a resgatar. A tarefa não é das mais simples. Estamos falando de alguém que escreveu quase 40 livros e que, embora tenha encontrado na história e na economia os núcleos fundamentais de suas reflexões, lidou com os temas mais diversos.

Essa é a razão pela qual o livro, dividido em nove capítulos, segue uma trajetória cronológica. O objetivo é demarcar o modo como as mudanças nas reflexões de Celso Furtado respondiam aos novos desafios que iam se acumulando e que tornavam cada vez mais improvável o salto nacional-desenvolvimentista por ele desejado nas décadas de 1950 e 1960. A fase da “fantasia organizada” havia sido “desfeita” pelo golpe militar de 1964.

Seria, porém, apenas nos anos 1970 que Furtado – então professor da ­Sorbonne, em Paris – daria início a um processo de autocrítica, afastando-se das teses “estagnacionistas”, segundo as quais o Brasil, sob a ditadura, estaria condenado à paralisia econômica.

Celso Furtado. Trajetória, Pensamento e Método. Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione Saes. Autêntica (320 págs., 79,80 reais)

Após o “milagre econômico”, Furtado deu início a uma problematização da noção de desenvolvimento: de horizonte para a superação do subdesenvolvimento, ela passa a ser vista como legitimação ideológica da “modernização” da “dominação-dependência”. O Brasil continuava a se industrializar, mas sem escapar da lógica global que faz da dependência de muitos a garantia do desenvolvimento de alguns.

O “desenvolvimento” transformava-se, assim, num “mito”, conforme o título do livro publicado em 1974. Em consequência, a “construção” nacional permanecia “interrompida”, como ele argumentaria em Brasil: A Construção Interrompida (1992).

Ao nos revelar as diversas faces de um intelectual quase sempre reduzido ao defensor obstinado do desenvolvimento nacional, Celso Furtado. Trajetória, Pensamento e Método nos fornece uma preciosa contribuição para a compreensão de uma figura cuja trajetória se “funde” – à sua maneira – com a história brasileira.

Trata-se de um livro que consegue ser didático sem ser simplista e nos coloca diante dos principais impasses da sociedade brasileira do passado e do presente.

Se o preço a pagar por essa ambição teórica e narrativa é um tratamento por vezes excessivamente condescendente da obra “furtadiana”, o custo ainda é, sem dúvida, bem inferior aos benefícios que este livro nos proporciona. Tanto mais em um momento, como o nosso, em que a ­utopia nacional se transformou em expressão periférica de um pesadelo global. •

*Professor de Sociologia da Unicamp.


VITRINE

Desterros: Histórias de Um Hospital-Prisão, relançado pela Todavia (176 págs., 69,90 reais), é a pesquisa acadêmica que fez a psiquiatra Natalia Timerman descobrir-se escritora. Seus personagens são os pacientes, médicos e carcereiros do Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário.

Arte Popular: Modos de Usar (280 págs., 99 reais), nascido da exposição Em Cada Canto, montada pelo Instituto Tomie Ohtake em torno da Coleção Vilma Eid, revisita a história da arte popular brasileira. A organização desse precioso conjunto de textos coube a Amanda Reis Tavares Pereira.

Dom Phillips escrevia Como Salvar a Amazônia quando foi assassinado, em 2022. O livro lançado pela Companhia das Letras (384 págs., 89,90 reais) é a junção desse projeto inacabado com o esforço de um grupo de jornalistas que se juntou para terminar de contar essa história.

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Os heterônimos de Celso Furtado’

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