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Donald Trump faz malabarismo para se dissociar das teses a respeito dos arquivos “secretos” de Jeffrey Epstein

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Donald Trump (à direita na foto) ao lado de Jeffrey Epstein – Imagem: AFP/Getty/Arquivo e iStockphoto
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Teorias da conspiração sempre foram um instrumento político e econômico explorado à exaustão por Donald Trump. O feitiço voltou-se, no entanto, contra o feiticeiro. Depois de alimentar durante a campanha eleitoral a tese de que algo de podre se escondia por trás dos arquivos secretos de Jeffrey Epstein, o magnata acusado de crimes sexuais que morreu na prisão em circunstâncias consideradas suspeitas pelo movimento MAGA, o republicano decidiu enfrentar a própria base e causou uma fratura nunca antes vista entre os apoiadores. Trump, ao mudar de postura a respeito do caso, chamou de “fracote” quem acredita em uma suposta lista de autoridades, milionários e celebridades envolvidos no esquema de pedofilia, acusou os democratas de espalhar mentiras e classificou de “farsa” a associação entre seu nome e o de Epstein, embora os dois tenham desenvolvido fortes laços de amizade ao longo dos anos.

Para muitos trumpistas, a declaração foi chocante. O apresentador Tucker Carlson, um dos maiores megafones da extrema-direita no país, disse em seu canal no YouTube ter se sentido traído pela decisão inicial da Casa Branca de negar a existência da lista. “Votei neste governo, mas, quando me mandaram calar a boca e me chamaram de teórico da conspiração, foi demais para mim.” O mesmo sentimento inundou centenas de apoiadores que, em protesto, passaram a queimar os adereços do MAGA, de bonés a bandeiras, em praças públicas.

Trump e Epstein conviveram de forma intensa nos anos 1990 e início dos anos 2000. Foram vistos juntos em festas, voos e eventos. Em declarações antigas, o presidente dos EUA chegou a dizer que os dois compartilharam um gosto por “mulheres jovens”, até que, no dia 17 de julho, uma reportagem do The Wall Street Journal revelou que o republicano, em celebração ao aniversário de 50 anos de Epstein, teria escrito um bilhete com o desenho de uma silhueta de uma mulher e a frase: “Que todos os seus dias sejam um segredo maravilhoso”. O texto, publicado em um jornal antes alinhado, foi recebido como uma punhalada. Trump negou o conteúdo, ameaçou processar o diário e pedir a quantia exorbitante de 2 bilhões de dólares. Não bastasse, na segunda-feira 21 barrou a presença do jornalista escalado pela publicação para a viagem presidencial à Escócia.  Na quarta-feira 23, o WSJ voltou à carga e informou que Trump foi informado em maio pelo Departamento de Justiça da presença de seu nome na lista de Epstein.

No domingo 20, The New York ­Times publicou a denúncia de uma ­ex-funcionária do financista, abusada sexualmente. A vítima afirma ter relatado ao FBI em duas ocasiões, 1996 e 2006, um encontro perturbador com Trump no escritório do antigo patrão. O agora presidente dos EUA, contou a mulher, “a observava e examinava suas pernas nuas, fazendo-a sentir medo”. A Casa Branca também negou a história e alegou que o republicano nunca esteve no escritório do financista. Na segunda-feira 21, em entrevista à rede de tevê CNN, o irmão de Epstein, Mark, não apenas afirmou ter visto Trump inúmeras vezes no local, como sugeriu que a mídia procurasse antigos funcionários da empresa. “Aqueles que trabalharam para Jeffrey em seu escritório, você pode encontrá-los. Eles podem confirmar que viram Trump no escritório em diversos momentos.”

Por anos, o republicano deu corda a teorias da conspiração

A crise expõe uma divergência inédita entre Trump e sua base mais cega. Se, até então, cada ataque do establishment reforçava a imagem do republicano como o único capaz de desmascarar os poderosos, agora as acrobacias do presidente levantam suspeitas. O que Trump, perguntam-se os fanáticos do MAGA, teria a esconder? O caso Epstein, apesar dos aspectos conspiratórios, envolve crimes ­reais, vítimas de carne e osso e negligência documentada. O suicídio do magnata, em 2019, em um presídio de Nova York de segurança máxima, contamina a imaginação dos cidadãos comuns.

Para desviar o foco, a Casa Branca apega-se a balões de ensaio midiáticos. Em 16 de julho, o presidente dos EUA anunciou ter convencido a Coca-Cola a mudar sua fórmula e substituir o xarope de milho por açúcar de cana na bebida comercializada no país. A empresa confirmou, na terça-feira 22, o lançamento de edição especial feita sob medida para agradar ao republicano e se livrar da história. Não satisfeito, Trump ameaçou bloquear o financiamento ao novo estádio se o Washington­ Commanders, equipe de futebol americano, não voltasse a adotar a alcunha de Redskins, termo racista usado para se referir aos povos indígenas da América do Norte de forma estereotipada e depreciativa. Em menos de 24 horas, voltou a criticar o Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, por supostamente sabotar o crescimento do país. Na segunda 21, publicou um vídeo gerado por Inteligência Artificial em que o ex-presidente Barack ­Obama é preso no Salão Oval da Casa Branca.

Não tem funcionado. Pesquisas recentes revelam uma crescente sensação entre os eleitores republicanos de que algo de muito errado se passa em ­Washington. Segundo levantamento Reuters/Ipsos, 60% dos norte-americanos acreditam que “o governo está escondendo detalhes sobre a morte de ­Epstein”, incluindo 55% dos republicanos.

Nos últimos oito anos, Trump esteve no centro de escândalos, enfrentou processos de impeachment e foi condenado na Justiça, mas nunca se deixou abalar publicamente. O caso Epstein, insuflado por ele mesmo, tornou-se, porém, um incômodo. O Departamento de Justiça afirmou não ter encontrado evidências para apoiar as teorias conspiratórias e disse que nenhuma informação adicional seria divulgada. O presidente da Câmara, Mike Johnson, anunciou, na terça-feira 22, a antecipação do recesso parlamentar, forma de evitar qualquer iniciativa da oposição até setembro.

Para conter a crescente insatisfação do MAGA, e “com base na quantidade ridícula de publicidade dada a Jeffrey Epstein”, Trump solicitou à procuradora-geral, Pam Bondi, a análise de “todo e qualquer depoimento relevante ao Grande Júri, sujeito à aprovação do Tribunal”. O procurador-geral-adjunto, Todd Blanche, disse que pretende encontrar-se com Ghislaine Maxwell, viúva de Epstein, condenada a 20 anos de cadeia por cinco crimes federais relacionados ao tráfico sexual de menores. Nas ruas e nas redes há, porém, um único apelo: a liberação dos arquivos. O republicano experimenta o próprio veneno. •

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Não olhe para cima’

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