Fernando Horta

Marcio Pochmann

Opinião

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Soberania digital

Eis a chance de discutir a posição do País na corrida tecnológica

Soberania digital
Soberania digital
Aumentar o controle sobre os dados produzidos no Brasil é um primeiro passo – Imagem: Ernesto Rodrigues Neto/DataGray
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Não erra por muito quem argumenta que o surgimento das redes sociais ou das IAs generativas marca uma nova etapa no desenvolvimento humano. A transição tecnológica atual e as amea­ças de Donald Trump expõem brutalmente a fragilidade da soberania brasileira neste momento, revelando um país um tanto quanto despreparado para os desafios do século XXI e seu admirável mundo novo digital.

Com o abandono do projeto nacional desenvolvimentista no fim dos anos 1980, o modelo de economia mista deslocou-se para uma crescente dualidade assentada no rentismo extrativista a canibalizar a economia e a soberania nacional. A apropriação hospedeira e improdutiva que asfixia o desenvolvimento permeia várias formas como a renda da terra, juros, oligopólios econômicos e, mais recentemente, os dados.

Há 200 anos, os brasileiros se depararam com a questão da soberania política, fundamental para garantir os interesses nacionais em conformidade com a vontade dos residentes. Um século depois, a questão da soberania política incorporou a dimensão soberana das decisões econômicas, uma vez que, até a Revolução de 1930, as atividades produtivas tendiam a responder mais às decisões externas do que às internas.

Atualmente, a questão da soberania ganha outra dimensão na era digital. Uma nova forma de subdesenvolvimento emerge das relações das economias produtoras e exportadoras de bens e serviços digitais com os países que tendem a financiar as suas importações com a comercialização de bens primários.

Uma nova oportunidade abre-se ao Brasil neste primeiro terço do século XXI. A defesa da soberania nacional encontra no Estado o reposicionamento dos seus ativos digitais, o que inclui dados, software, hardware e infraestrutura, além da capacidade de influenciar e regular as tecnologias digitais.

Capitalismo analógico

Durante os séculos XIX e XX, a soberania nacional construiu-se por meio do controle físico de territórios e mercados. O capitalismo analógico desenvolveu sofisticadas tecnologias sociais: sistemas jurídicos nacionais, códigos comerciais, instituições regulatórias e aparatos de enforcement. Essa dança entre poder estatal e capital privado regeu a construção de regulamentos ao longo do século XX, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, quando o Norte anglófono moldou as arquiteturas regulatórias globais via Bretton Woods, GATT e, posteriormente, a Organização Mundial do Comércio. O sistema de propriedade industrial representou o ápice dessa arquitetura de controle territorial.

Novos ecossistemas de poder

O capitalismo digital, consolidado na primeira década do século XXI, fragmentou a lógica territorial e inaugurou um neoextrativismo de dados que concentra riqueza como nunca na história. São poucos os modelos de ecossistemas digitais que disputam a hegemonia global: o anglófono (Estados Unidos, com apoio da União Europeia), o chinês autônomo e modelos alternativos fragmentados da Coreia do Sul, Rússia e Japão.

Diante dessa realidade, torna-se imperativa a rediscussão da soberania digital em três dimensões críticas: de infraestrutura (controle sobre redes, servidores e conectividade), de tecnologia (capacidade de desenvolvimento autônomo de hardware, software e algoritmos) e de dados (autoridade sobre coleta, processamento e utilização de informações nacionais).

E o Brasil?

O País encontra-se precário nos três níveis. Na soberania de infraestrutura, engatinha em ações regulatórias que, embora necessárias para garantir a mínima segurança democrática, têm pouca capacidade de influenciar o desenvolvimento dessas tecnologias. As proibições digitais revelam-se insuficientes, demandando construção social robusta que transcenda legislação e Judiciário, emergindo da educação (letramento digital) e da cultura (apoderamento tecnológico).

Na soberania tecnológica, o atraso é dramático, com dependência absoluta nos setores de semicondutores, computação­ quântica e tecnologias críticas. No controle de dados reside o maior desafio: o País não detém soberania real, permitindo que empresas estrangeiras extraiam livremente informações estratégicas brasileiras. Públicas e privadas.

Uma nova forma de subdesenvolvimento desenha-se no século XXI

Paradoxalmente, nesse assunto, o Brasil foi vanguarda mundial com a Lei Geral de Proteção de Dados, discutida entre 2014 e 2018. Contudo, diante da ausência de soberania nos outros níveis, a LGPD também padece da incapacidade de agir efetivamente. Os data centers ilustram perfeitamente esse dilema. Apesar de fisicamente instalados em território nacional, operam sob códigos, algoritmos e interesses alheios ao governo brasileiro. A LGPD, por mais avançada, revela-se insuficiente diante das transformações aceleradas, especialmente com a IA, que redefine completamente as dinâmicas de dados.

A solução pode estar numa ação específica nas três áreas, começando estrategicamente por uma declaração de soberania sobre dados. Essa escolha se justifica por vantagens práticas: as normas de governança são recentes e pouco assentadas globalmente, oferecendo janela de oportunidade para o Brasil posicionar pioneiramente. Diferentemente dos outros níveis de soberania digital, que exigem investimentos maciços de longo prazo, a soberania sobre fluxos de dados pode ser implementada com custo institucional diluído no tempo, gerando, contudo, efeitos benéficos imediatos.

Ao apropriar-se do único recurso digital abundante, a produção diária de dados, o Brasil se beneficiaria institucionalmente, reforçando identidades territoriais e tornando a democracia mais robusta. Os recursos das licenças de exploração de dados, como hoje de petróleo, poderiam provocar efeito positivo no ecossistema digital brasileiro. Donald Trump oferece, talvez, uma oportunidade para mudarmos de roupa e entrarmos no século XXI usando mais conteúdo nacional. •


*Fernando Horta é professor de Relações Internacionais; Marcio Pochmann é presidente do IBGE.

Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Soberania digital’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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