

Opinião
Aquarela sem cor
Com as sucessivas boiadas ambientais, em breve os biomas brasileiros terão o mesmo tom: ocre da terra calcinada, cinza da terra morta


Será por cinismo ou pura indiferença que o Congresso Nacional aprovou, a poucos meses da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, um Projeto de Lei que desfigura completamente o processo de licenciamento ambiental no Brasil? Não bastasse, um dia antes da votação do chamado “PL da Devastação”, como a iniciativa foi apelidada por ambientalistas, a Câmara aprovou outro projeto que autoriza o uso de 30 bilhões de reais do Fundo Social do Pré-Sal, originalmente concebido para financiar a educação e a saúde pública, para quitar dívidas de produtores rurais em áreas atingidas por calamidades – agravadas, registre-se, pela exploração predatória do agronegócio. A essas infâmias se somam todas as boiadas anteriores para “flexibilizar” a legislação ambiental, desmontando instrumentos de proteção às florestas e às Terras Indígenas.
Com esse ímpeto, os nobres deputados e senadores demonstram não dar a mínima importância à crise climática e à situação calamitosa provocada pelos setores mais atrasados do agronegócio no País. Essas iniciativas, que fragilizam a proteção da Amazônia e dos demais biomas brasileiros, escancaram o verdadeiro projeto da bancada ruralista: uma política de terra arrasada, que permite tudo para maximizar o lucro de quem faz fortuna com cana-de-açúcar, soja e outras commodities agrícolas. E não nos venham com a conversa fiada de que “o agro alimenta o Brasil”. Esse modelo só alimenta os grandes latifundiários, que faturam alto com monoculturas voltadas à exportação. Quem abastece, de fato, a mesa dos brasileiros são os pequenos produtores: agricultores familiares e assentados da reforma agrária.
Para quem tem dinheiro e sabe que a transformação de matas em pastos e canaviais costuma ficar impune, a devastação é sopa no mel. Água, para eles, não faltará. Quem dispõe de recursos e tecnologia saberá explorar o que resta dos lençóis freáticos para regar suas vastas monoculturas, sob o pretexto de “alimentar o Brasil”. De cana e soja, apenas. Não fossem os pequenos produtores, as famílias brasileiras estariam perdidas. E são exatamente eles – os agricultores familiares e assentados – os primeiros prejudicados quando o agronegócio apronta das suas. Correm o risco de ver suas hortas calcinadas pelo fogo, quando grandes pecuaristas promovem queimadas para ampliar áreas de pastagem, ou de perder plantações e animais de subsistência quando as fontes de água secam, por interferência dos grandes players do agro. Quem mais perde são os brasileiros anônimos, lavradores pobres ou remediados, que não têm comparsas no Congresso nem recursos para perfurar poços artesianos mais fundos.
O mais espantoso é que todos sabem que a devastação também afetará, cedo ou tarde, as práticas dos próprios devastadores. Cerca de 70% das áreas desmatadas na Amazônia se transformaram em pastos improdutivos, segundo dados do MapBiomas. Como alerta a líder indígena Txai Suruí, em sua coluna na Folha de S.Paulo, diversos estudos científicos indicam que o sensível bioma amazônico pode estar se aproximando de um ponto de não retorno, com a conversão da floresta tropical em savana, o que deve alterar significativamente, e para pior, o regime de chuvas em todo o continente.
As Terras Indígenas, preservadas com zelo por seus habitantes, ainda têm potencial para salvar o País da desertificação. Nos últimos 30 anos, esses territórios perderam apenas 1% de sua cobertura de vegetação nativa, enquanto, nas áreas privadas, a perda chegou a 20,6%, revela outro estudo divulgado pelo MapBiomas. Apesar de serem aliados fundamentais no combate ao desmatamento, os povos originários continuam sob ataque permanente da bancada ruralista no Congresso. Lamentavelmente, a tendência é que os indígenas, assim como os animais silvestres, também sejam expulsos de suas terras pelos capangas do agro.
Mantida essa exploração predatória, a aquarela do Brasil em breve terá uma só cor: uma mistura entre o ocre da terra calcinada e o cinza da terra morta. Termino evocando uma cena dolorosa que vi em algum jornal, no ano passado ou retrasado: a foto arrasadora de uma pequena raposa correndo entre labaredas de fogo no Pantanal em chamas. De cortar o coração. A raposinha da foto não representa apenas a alteridade do reino animal: em breve, há de tornar-se um símbolo que representa todos nós. •
Publicado na edição n° 1372 de CartaCapital, em 30 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aquarela sem cor’
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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