

Opinião
A justiça tributária como um instrumento de reparação histórica
Tributar com justiça significa reconhecer a dívida histórica do país com sua população negra e transformá-la em ação concreta


O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. O 1% mais rico concentra quase 50% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres recebem menos de 15%. Esses números escancaram uma realidade persistente: a concentração de renda e o avanço das desigualdades, agravados por políticas neoliberais de austeridade que congelam investimentos essenciais em saúde e educação, achatam o salário mínimo e beneficiam grandes empresas com subsídios e perdões de dívidas.
Além da desigualdade econômica, o país carrega desigualdades raciais e de gênero profundamente enraizadas. Como aponta o sociólogo Carlos Hasenbalg, essas desigualdades são históricas, estruturadas por marcadores como raça, classe e gênero, que se sobrepõem e perpetuam exclusões. No Brasil, o racismo opera de forma contínua e institucional, relegando a população negra a posições subalternas. A antropóloga Lélia Gonzalez já alertava para o mito da democracia racial como um discurso que mascara a centralidade do racismo na organização social. Nesse contexto, a mulher negra ocupa uma posição marcada pela sobreposição de opressões — fruto da intersecção entre racismo e sexismo — que gera exclusões específicas e profundas.
A abolição da escravidão, em 1888, veio sem qualquer política de reparação. Homens e mulheres negras foram deixados à margem, disputando espaço em um país que lhes negou direitos básicos. Esse abandono produziu um ciclo de exclusão que se reproduz até hoje: moradias precárias, educação pública de baixa qualidade, empregos mal remunerados e mobilidade social quase nula. A igualdade proclamada pela República nunca se realizou para essa parcela da população.
As mulheres negras, em especial, foram e seguem sendo as mais impactadas. Desde o período colonial, carregam o peso de múltiplas opressões. Estão concentradas nos postos mais precarizados e informais, como o trabalho doméstico, e ainda são responsáveis pelo cuidado não remunerado de suas comunidades. São elas que enfrentam os piores indicadores sociais: menor renda, maior exposição à violência de gênero, maior mortalidade materna e menor escolaridade.
Mesmo quando conquistam espaços de poder, como Marielle Franco, tornam-se alvos preferenciais da violência política. Segundo levantamento do Instituto Marielle Franco em 2020, 44% das candidatas negras nas eleições municipais sofreram violência racial, e 28% enfrentaram violência de gênero ou LGBTQIA+fóbica.
O sociólogo Göran Therborn propõe uma leitura que ajuda a compreender a complexidade do problema. Ele identifica três tipos de desigualdades: vitais (relacionadas à saúde e expectativa de vida), existenciais (dignidade, reconhecimento e respeito) e materiais (acesso e resultados em termos de renda e patrimônio). No Brasil, a população negra — especialmente as mulheres — vive todas essas formas de desigualdade simultaneamente. A exploração no trabalho, a rigidez da hierarquia social e os limites ao acesso a moradia, educação e espaços de decisão refletem um sistema que naturaliza a exclusão.
Romper esse ciclo exige mais do que políticas pontuais: é preciso promover transformações estruturais na forma como o Estado arrecada e distribui recursos. Nesse contexto, a reforma tributária e a justiça fiscal se tornam estratégias fundamentais para reduzir as distâncias sociais. A justiça tributária deve deixar de ser apenas um princípio constitucional e tornar-se realidade prática, assegurando que a carga de impostos respeite a capacidade contributiva de cada grupo. Essa é uma demanda antiga do movimento negro e, especialmente, do movimento de mulheres negras, como mostra a Agenda Marielle Franco, lançada em 2020.
O sistema tributário brasileiro, porém, ainda é regressivo: baseia-se majoritariamente em impostos sobre o consumo, o que penaliza desproporcionalmente os mais pobres. Estudo do Inesc, de 2023 mostra que os 20% mais pobres pagam 21,3% de sua renda em impostos, enquanto os 20% mais ricos pagam 18,7%. Isso significa que mulheres negras, já em posição desfavorecida, acabam pagando proporcionalmente mais. A lógica tributária atual, portanto, não apenas ignora as desigualdades de gênero e raça — ela as aprofunda.
A solução passa por uma legislação que reformule o sistema com base na equidade: maior tributação sobre renda e patrimônio, considerando as desigualdades históricas e estruturais. A baixa tributação sobre super-ricos, grandes heranças, lucros e dividendos, além da resistência em regulamentar a taxação de grandes fortunas, prevista na Constituição de 1988, revela o descompromisso com a redistribuição de riqueza.
A tributação progressiva é mais do que uma questão técnica: é um instrumento de reparação histórica. Pode corrigir distorções, financiar serviços públicos e garantir direitos básicos. A Carta das Mulheres Negras de 2015 evidencia como a exclusão racial e de gênero é fruto de estruturas sociais duradouras. O enfrentamento dessas desigualdades exige políticas públicas redistributivas. E a justiça tributária é central nesse processo.
Tributar com justiça significa reconhecer a dívida histórica do país com sua população negra e transformá-la em ação concreta. O Estado precisa assumir sua função redistributiva com coragem e compromisso. Tributar riqueza é um passo essencial para viabilizar as políticas que essas mulheres vêm reivindicando há décadas: trabalho digno, moradia segura, saúde integral, educação de qualidade e o direito ao bem viver. Nesse sentido, a justiça tributária se torna não apenas uma demanda orçamentária — mas uma bandeira de reparação, inclusão e dignidade.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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