Diversidade
Falsas beatas
A extrema-direita sai em cruzada contra a Parada LGBT de Belo Horizonte, a segunda maior do País


A extrema-direita mineira não descansa jamais. Na falta de um assunto nacional a ser explorado nas redes sociais, a turma que tem como guia o deputado federal Nikolas Ferreira decidiu retomar a cruzada contra a população LGBTQIAPN+. Após tentativas frustradas de proibir banheiros unissex, censurar o uso da linguagem neutra e banir transgêneros dos esportes, a artilharia agora mira o principal evento de mobilização da comunidade no estado. Segunda maior do Brasil, a Parada do Orgulho LGBTQIAPN+ de Belo Horizonte, que chega à sua 26ª edição no domingo 20, atrai dezenas de milhares de turistas e aquece a economia local. Em 2024, o evento reuniu 300 mil participantes e movimentou mais de 20 milhões de reais, um retorno excepcional para um investimento de 650 mil reais na organização, dos quais apenas 350 mil foram bancados pela prefeitura, segundo o Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual e Identidade de Gênero (Cellos), organizador da parada há 23 anos. Ainda assim, dois vereadores do Partido Liberal, Pablo Almeida e Uner Augusto, aprendizes de Ferreira, protocolaram uma ação popular para tentar barrar o ato.
A dupla jura não ter o intuito de proibir o evento, alega querer apenas proteger os cofres públicos. “A ação que propomos visa resguardar o tão escasso recurso do contribuinte, considerando que questiono o gasto de 450 mil reais para a contratação direta, isto é, sem licitação, de uma entidade para organizar a parada”, alega Almeida, que também se declara contra a realização do Carnaval e das festas de São João. Para Augusto, a destinação da verba sem processo licitatório “violou alguns princípios da administração pública, como a legalidade, a impessoalidade e a própria eficiência”.
Na segunda-feira 14, a deputada federal Duda Salabert, do PDT, participou de uma reunião com conselheiros do Tribunal de Contas do Estado para discutir o impasse. Conclusão: o argumento dos vereadores não se sustenta do ponto de vista técnico e contábil. Isso porque a prefeitura não promove nem contrata a parada, apenas financia parte do evento, o que dispensa a necessidade de processo licitatório. “É algo comum, que a administração também faz com outras manifestações populares, como a Marcha para Jesus”, explica Salabert. “O TCE mostrou que não há empecilho para o Cellos organizar a parada. Ao contrário, é uma instituição que há anos realiza o evento e tem toda a legitimidade.”
Para Maicon Chaves, presidente do Cellos, a ação representa uma tentativa de instrumentalizar o Judiciário com o objetivo de atrair os holofotes para a agenda extremista. “Isso não é novidade. É uma ação organizada pela extrema-direita no Brasil”, afirma. Chaves vê em Minas Gerais um “campo de experiência” para esse tipo de investida. “Sabemos que a metodologia deles é justamente essa, mesmo recorrendo a fundamentos jurídicos infundados ou inconstitucionais. O compromisso deles é com a difusão de mentiras, não com a sociedade.”
Na mesma linha, Salabert avalia tratar-se de uma “estratégia da extrema-direita que utiliza a homofobia como ferramenta política”. Ela própria foi vítima de um ataque transfóbico por parte de Ferreira, condenado a pagar indenização de 30 mil reais à colega parlamentar – decisão mantida pelo Superior Tribunal de Justiça em junho. Nesse contexto, a deputada afirma que a capital mineira se tornou o “epicentro de ataques aos direitos LGBT”. Também demonstra preocupação com um possível avanço da ação popular, que, segundo ela, pode transformar-se em precedente jurídico para barrar outras paradas pelo País. “Essa investida representa um ataque direto à democracia e à cultura popular, porque a parada é um espaço de reivindicação de direitos e de manifestações artísticas.”
Vereadores do PL querem impedir o uso de dinheiro público no evento. Já a Marcha para Jesus… tudo pode
Segundo a deputada, Almeida e Augusto não estão, de fato, preocupados com a aplicação dos recursos públicos, como alegam. Trata-se de uma desculpa para “ganhar visibilidade, engajamento e likes nas redes sociais”. Ao direcionar tempo e recursos para ações desse tipo, os vereadores do PL deixam de “discutir questões importantes para a cidade”, critica. “Não se trata de um episódio isolado, muito menos localizado. É uma ação coordenada pela extrema-direita em todo o Brasil.”
A vereadora Luiza Dulci, do PT, observa que não é a primeira vez que parlamentares do PL recorrem a instrumentos jurídicos para “desrespeitar os direitos humanos, a diversidade e os movimentos sociais”. Segundo ela, Ferreira frequentemente aparece no plenário municipal para fortalecer a agenda reacionária local. Com apoio de outros expoentes da extrema-direita, como o deputado estadual Bruno Engler, candidato derrotado à prefeitura nas últimas eleições, os vereadores têm conseguido avançar pautas retrógradas. “Há pouco tempo foi aprovado o uso da Bíblia como material paradidático nas escolas municipais”, destaca Dulci. A proposta foi sancionada e está em vigor.
Almeida foi o vereador mais votado de Belo Horizonte, impulsionado pelo apoio fervoroso do padrinho político, Nikolas Ferreira. É conhecido por ataques recorrentes aos direitos das mulheres e dos trans. Durante a campanha eleitoral de 2024, chegou a publicar nas redes sociais a imagem de uma gestante para se manifestar contra o aborto, com a legenda: “Não é seu corpo. Não é sua escolha”.
Augusto, por sua vez, propôs recentemente a criação do Dia Municipal dos Métodos Naturais, a ser celebrado em 7 de junho. A ideia era promover palestras sobre formas naturais de regulação da fertilidade, em oposição aos métodos contraceptivos amplamente utilizados, como a camisinha e a pílula anticoncepcional. Tentou ainda obrigar a fixação de “cartazes educativos” em clínicas e hospitais que atendem gestantes, com o objetivo de impactar emocionalmente mulheres inclinadas a realizar aborto. O conteúdo dos materiais apelava ao sensacionalismo, explicando de forma gráfica como “ocorre a ‘morte’ do nascituro”.
O mais grave da situação, afirma Dulci, é que se trata de uma “construção articulada, um movimento que estamos vendo ganhar força em todo o Brasil”. E, por mais absurdas que sejam as propostas, ela destaca um ponto preocupante: “Esses vereadores foram eleitos. Então, essa violência institucionalizada por eles tem, infelizmente, certo respaldo popular”. •
Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Falsas beatas’
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