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O arrepiante extraído do banal

Kiyoshi Kurosawa, um dos grandes diretores em atividade, capta, por meio da violência, o mal-estar contemporâneo

O arrepiante extraído do banal
O arrepiante extraído do banal
Trama inusitada. Cloud – Nuvem de Vingança está em cartaz no circuito brasileiro desde a quinta-feira 17 – Imagem: Tony Barson
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Nas últimas três décadas, o japonês Kiyoshi Kurosawa consolidou-se como um dos mais importantes diretores do cinema contemporâneo. Apesar de trabalhar desde o fim da década de 1980, ele se projetou mundialmente em 1997, com a boa repercussão do suspense policial A Cura. Nesse filme, Kurosawa já apresentava o estilo a um só tempo intenso e minimalista, que mescla o dia a dia de personagens comuns da vida urbana a situações inusitadas e, muitas vezes, arrepiantes.

Desde então, a atmosfera densa – na qual a construção dramática é estruturada pelo tempo, pelo silêncio e pela contenção dos gestos – permeia cada um dos quase 30 filmes de sua notável cinematografia. Títulos como Pulse (2001), Sonata de Tóquio (2008), Creepy (2016) e Antes Que Tudo Desapareça (2017) firmaram uma assinatura autoral marcada por códigos de linguagem bem estabelecidos e pouco convencionais.

Kurosawa vem de uma geração de rea­lizadores japoneses que, nos anos 1990 e na primeira década dos anos 2000, redefiniu o cinema de gênero no país. O que diretores como Shinya ­Tsukamoto (Tetsuo, o Homem de Ferro, 1989), Hideo Nakata (O Chamado, 1998) e Takashi Miike (Audição, 1999) fizeram foi incorporar o horror, o suspense e o drama social a projetos autorais, nos quais a atmosfera importa tanto quanto a trama.

A solidão urbana, o colapso da comunicação entre as pessoas, a crise das identidades e o desconforto diante das incertezas da virada do século foram, naquele momento, captadas de forma original por esse conjunto de cineastas dos quais Kurosawa faz parte – tendo, ao longo dos anos, se destacado mais e mais.

Seu novo trabalho, Cloud – Nuvem de Vingança, em cartaz nos cinemas brasileiros desde a quinta-feira 17, é bastante representativo de seu estilo. Drama de aparência realista, o longa-metragem segue a trajetória de Yoshii (Masaki Suda), operário de fábrica que também vende produtos ilegais pela internet.

Depois de haver lucrado o suficiente para abandonar o emprego formal, o protagonista muda-se para uma casa maior, expande o negócio, chama a namorada para morar com ele e contrata um ajudante. No entanto, quão mais fundo mergulha nos negócios escusos, mais frio e calculista o rapaz se torna. E a situação começa a sair do controle quando clientes insatisfeitos com suas falcatruas vão em seu encalço tirar satisfações.

Em entrevista a Carta Capital feita por videochamada, dentro do trabalho de divulgação do filme no Brasil, Kiyoshi ­Kurosawa diz que, de fato, está sempre em busca dos limites entre o ordinário e o extraordinário dentro de cenários reconhecíveis do dia a dia.

“Quero trazer para a cena o que é real.­ Embora eu entenda que o irreal e a fantasia é que são próprios do cinema, não consigo, desde o primeiro passo do filme, começar pensando em cinema”, diz. “Meu trabalho, então, é o seguinte: preciso começar pensando na realidade.”

É por isso que seus filmes transitam com tanta naturalidade rumo ao insólito – às vezes, rumo ao esquisito, sempre ao inesperado. A tensão experimentada pelo público de Cloud até a metade da trama acabará por explodir em violência. Mas a densidade das ações extrapola também para algo de cômico e caricato.

Kurosawa tem consciência disso: “No momento em que começam a surgir determinados personagens, o espectador vai pensar: ‘Gente, essas pessoas existem, isso é real, poderia acontecer’”, descreve. “Mas estou saindo da realidade para chegar à essência do filme, carregando nisso algum grau de comicidade.”

Outro elemento forte em Cloud é certo ar de melancolia, que reflete um sentimento dos personagens e que pode ser entendido como um comentário do cineasta sobre o sentido mais amplo das relações capitalistas num mundo cada vez mais globalizado.

“Você está ali, com várias pessoas no seu entorno, tem algum tipo de relacionamento, mas, no fim, está sempre sozinho”, diz o cineasta

A consequência desse estado de coisas pode ser, como diz Kurosawa, o isolamento afetivo e individual. “Você está ali, com várias pessoas no seu entorno, tem algum tipo de relacionamento, mas, no fim, está sempre sozinho”, reflete. “Acho que é isso que capto e reconheço nos meus filmes, porque é algo que vivemos hoje em dia. Eu não conecto, porém, a solidão com a tristeza.”

O filme pode ser entendido também como uma crônica moderna, já que o antinaturalismo disfarçado de realismo dá gradualmente espaço para o absurdo das situações.

A maturidade narrativa faz com que o diretor, que completa 70 anos no próximo dia 19, não reaja de forma direta às mazelas da contemporaneidade. Sua percepção é quase sempre espirituosa e sutil; a política aparece na forma como ele filma os personagens e os coloca em choque.

A fidelidade exacerbada do assistente, o deslocamento dos papéis de gênero, representado pela namorada, e a inconsequência tanto do protagonista quanto de seus perseguidores dizem muito sobre a ânsia por dinheiro, a raiva e o automatismo da sobrevivência.

Cloud – Nuvem de Vingança foi lançado no Japão e em vários outros países em 2024. Apesar de chegar só agora ao Brasil, faz parte de uma safra particularmente produtiva do diretor. Foram três filmes somente no ano passado: antes de Cloud vieram os inéditos por aqui Chime e O Caminho da Serpente.

Kurosawa, que recebeu o Leão de Prata de melhor diretor no Festival de Veneza por A Mulher de Um Espião (2020), foi ainda professor de Cinema na Universidade de Tóquio entre 2005 e 2023. •

Publicado na edição n° 1371 de CartaCapital, em 23 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O arrepiante extraído do banal’

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