Mundo
A chantagem de Trump
Bolsonaro é o bode na sala. A Casa Branca mira os BRICS


O julgamento de Jair Bolsonaro e dos golpistas pelo Supremo Tribunal Federal serviu de desculpa para o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, retaliar o Brasil por conta dos anúncios de maior integração financeira entre os parceiros dos BRICS durante a reunião no Rio de Janeiro (saiba mais à página 16). Na quarta-feira 9, após uma série de insinuações nas redes sociais e de declarações públicas, a Casa Branca anunciou a imposição de tarifas de 50% sobre qualquer produto brasileiro exportado para os EUA. Trump enviou uma carta ao presidente Lula, na qual desfia mentiras, recorre à chantagem explícita e tenta interferir de modo descarado, mesmo para os padrões históricos dele próprio e de Washington, na soberania do País e na autonomia da Justiça brasileira.
“A maneira como o Brasil tem tratado o ex-presidente Bolsonaro…”, anota no primeiro parágrafo da missiva. “…é uma vergonha internacional. Este julgamento não deveria estar acontecendo. É uma caça às bruxas que deve terminar IMEDIATAMENTE!” Na sequência, Trump reclama da “perseguição” a redes sociais norte-americanas pelo Supremo Tribunal Federal – o que chama de perseguição é a simples necessidade de cumprir as leis nacionais, impostas a qualquer empresa instalada no País –, e cita um inexistente déficit dos EUA nas transações comerciais, apesar de, nos últimos 15 anos, a balança ter sido amplamente favorável ao Grande Irmão do Norte. Caso o governo Lula decida impor tarifas recíprocas, assevera, o mesmo porcentual será acrescentado aos 50% anunciados. A taxação começa a valer em 1° de agosto.
A escala retórica de Washington começou por meio de uma jogada casada com a Justiça da Flórida. Na segunda-feira 7, um juiz do estado norte-americano voltou a intimar o ministro Alexandre de Moraes a se defender em um processo movido pelo Rumble, uma plataforma digital de extrema-direita, e pela Trump Media. O magistrado é acusado de violar a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que trata da liberdade de expressão, ao ordenar a remoção de contas de influenciadores brasileiros usadas para disseminar notícias falsas e incitar um golpe de Estado no Brasil. O processo na Flórida cita nominalmente o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, foragido da Justiça nacional e malocado nos Estados Unidos, como uma das supostas vítimas das “tentativas de censura”. Moraes terá 21 dias para responder à intimação, sob pena de ser julgado à revelia. Em junho, o tribunal havia feito uma primeira citação ao ministro. Como se trata de uma autoridade brasileira, a Advocacia-Geral da União atuará na defesa do magistrado, que em fevereiro suspendeu o Rumble, após a empresa ignorar decisões do STF e recusar-se a nomear um representante legal. Uma manobra mal-intencionada, cujo único objetivo é desobedecer às determinações do tribunal.
O republicano age por interesses pessoais e baseia-se em mentiras para retaliar o Brasil
A intimação da Justiça da Flórida serviu de gancho para Trump fazer, pela primeira vez, a defesa pública de Bolsonaro. “Ele não é culpado de nada, exceto por ter lutado pelo povo”, escreveu na Truth Social antes de anunciar o tarifaço. Não se trata de mera coincidência que a defesa do golpista brasileiro, antes evitada pela Casa Branca, apesar dos esforços do “exilado” deputado Eduardo Bolsonaro, tenha se tornado tão enfática. Até o domingo 6, o Brasil não estava no radar da retomada da guerra tarifária, completados os 90 dias de trégua estabelecida pelo governo dos EUA. Antes de a Casa Branca suspender os impostos extras, o País havia sido taxado em 10%, o menor porcentual entre as dezenas de economias visadas. Passou, no entanto, a figurar no topo da tabela. Em segundo lugar, com 30%, estão pequenas economias como Argélia, Bunei e Iraque. E o que mudou desde domingo? O desfecho da reunião dos BRICS no Rio de Janeiro, na qual foram anunciados avanços na discussão de uma arquitetura financeira que possibilite, no futuro, a redução da dependência do dólar nas transações comerciais e financiamentos. Antes de mirar apenas no Brasil, o presidente dos EUA havia ameaçado impor sanções a quem desafiasse a hegemonia da moeda norte-americana.
Bolsonaro e seus seguidores se assanharam, mas não será surpresa se o tiro sair pela culatra. Diante da imediata reação do setor produtivo, profundamente afetado pelas medidas, e dos meios de comunicação, a ofensiva tende a fortalecer a posição do presidente Lula e a defesa da soberania e evidenciar o entreguismo e o vira-latismo dos bolsonaristas. Convém à oposição relembrar os casos do Canadá e do México. O Partido Liberal do ex-primeiro-ministro canadense Justin Trudeau caminhava para uma derrota histórica nas eleições legislativas até o ocupante da Casa Branca iniciar uma campanha de insultos dirigida ao premier e ao país. Resultado: os liberais viraram o jogo e deram um banho nas urnas nos conservadores, alinhados ao presidente dos Estados Unidos. Já a presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, consolidou uma extraordinária popularidade, perto de 85%, na esteira do assédio promovido pelo republicano. Trump, está demonstrado, tornou-se um eficiente cabo eleitoral de quem insulta e tenta constranger.
Os exportadores estão preocupados com o impacto sobre o faturamento e o emprego. A indústria é o setor mais afetado – Imagem: Rodrigo Felix Leal/GOVPR
Lula convocou uma reunião de emergência com os ministros ainda na quarta-feira 9. No mesmo dia, o Palácio do Planalto divulgou a resposta a Trump. “O Brasil é um país soberano, com instituições independentes, que não aceitará ser tutelado por ninguém”, começa o texto. “O processo judicial contra aqueles que planejaram o golpe de Estado é de competência apenas da Justiça brasileira e, portanto, não está sujeito a nenhum tipo de ingerência ou ameaça que fira a independência das instituições nacionais.”
Adiante, o petista rebate as acusações de censura às redes: “No contexto das plataformas digitais, a sociedade brasileira rejeita conteúdos de ódio, racismo, pornografia infantil, golpes, fraudes, discursos contra os direitos humanos e a liberdade democrática. No Brasil, liberdade de expressão não se confunde com agressão ou práticas violentas. Para operar em nosso país, todas as empresas nacionais e estrangeiras estão submetidas à legislação brasileira”.
A soberania orienta a relação do Brasil com o mundo, afirmou Lula
Na mensagem, Lula lembra que os EUA obtiveram um superávit com o Brasil de 410 bilhões de dólares ao longo de 15 anos e informa que vai aplicar a lei de reciprocidade econômica. “A soberania, o respeito e a defesa intransigente dos interesses do povo brasileiro são os valores que orientam a nossa relação com o mundo.” Na coletiva de imprensa no fim do encontro dos BRICS, o mandatário brasileiro já havia reagido às intimidações. “Não acho uma coisa muito responsável e séria um presidente da República de um país do tamanho dos EUA ficar ameaçando o mundo através da internet. Não é correto. Ele precisa saber que o mundo mudou. Não queremos imperador.” O Itamaraty, que havia convocado Gabriel Escobar, encarregado de negócios da Embaixada dos EUA (o país ainda não indicou um embaixador para o posto), para dar explicações por conta de uma nota de apoio à teoria de perseguição a Bolsonaro, foi além. Aproveitou a “visita” de Escobar para devolver a carta enviada por Trump, em um dos gestos mais firmes e simbólicos da diplomacia.
Representantes do setor industrial e do agronegócio reagiram ao tarifaço. Consideram as medidas injustas e sem embasamento e temem os efeitos sobre o faturamento e os empregos. Em nota, a Frente Parlamentar da Agropecuária defendeu uma resposta firme e estratégica. “É momento de cautela, diplomacia afiada e presença ativa na mesa de negociações.” Segundo Ricardo Alban, presidente da Confederação Nacional da Indústria, “não existe qualquer fato econômico que justifique uma medida desse tamanho, elevando as tarifas sobre o Brasil do piso ao teto. Os impactos podem ser graves para a nossa indústria, que é muito interligada ao sistema produtivo americano. Uma quebra nessa relação traria muitos prejuízos à nossa economia. Por isso, para o setor produtivo, o mais importante agora é intensificar as negociações e o diálogo para reverter essa decisão”. O governo Lula nunca se recusou a negociar desde os primeiros sinais da “guerra tarifária” iniciada pela Casa Branca. O Palácio do Planalto e o Itamaraty enxergam, porém, pouca margem para a diplomacia neste momento, por causa do caráter político das medidas anunciadas por Trump. Como é impossível ceder à chantagem e interferir em processos no Judiciário e como se trata de falácia o suposto déficit comercial dos Estados Unidos, faltam temas a serem colocados na mesa.
Trudeau e Sheinbaum ganharam apoio popular após o assédio promovido por Trump – Imagem: Gerardo Luna/Governo do México e Governo do Canadá
Na quarta-feira 9, Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia, externou o incômodo de uma certa elite norte-americana com o avanço da autocracia no país. Em um texto intitulado Política de Proteção a Ditadores de Trump, Krugman classificou o tarifaço imposto ao Brasil de “maligno e megalomaníaco” e defendeu o impeachment do presidente dos EUA. “Por que digo que é megalomaníaco? O Brasil tem mais de 200 milhões de habitantes. Veja para onde vão suas exportações: as exportações para os EUA representam menos de 2% do PIB brasileiro. Trump realmente imagina que pode usar tarifas para intimidar uma nação enorme – que nem sequer depende muito do mercado americano – a abandonar a democracia?”, escreveu. “Repare que Trump mal finge ter uma justificativa econômica para essa ação. Tudo isso tem a ver com punir o Brasil por colocar Jair Bolsonaro em julgamento. Não seria a primeira vez que os Estados Unidos usam a política tarifária para fins políticos.” •
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A chantagem de Trump’
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