Cultura
Histórias de bichos, mas para adultos
María Ospina Pizano cria um universo no qual os animais são equivalentes, em importância, à humanidade


Por terra ou pelo ar, os protagonistas do romance Só Um Pouco Aqui, da colombiana María Ospina Pizano, estão em estado de impermanência. São eles duas cachorras de rua, uma ave migratória, um besouro e uma porca-espinho. Todos buscam sobreviver enquanto transitam por um mundo em que as fronteiras nacionais são uma exclusividade humana.
A escolha por um enredo em que bichos são os personagens principais é reveladora de um narrador onisciente que olha para outras espécies como sendo equivalentes, em importância, ao homo sapiens. No universo do livro, os animais são análogos à humanidade – não há diferença hierárquica.
Essa abordagem dos animais já foi experimentada por outros autores. Tolstoi inventou o mais humano dos cavalos em Kholstomér (1886) e Graciliano Ramos criou a magistral cadela Baleia, em Vidas Secas (1938). O que há de diferente em Só Um Pouco Aqui é que os animais não são afetados apenas por decisões humanas, mas por um sistema econômico e político.
No início da leitura, não é descabido pensar que se trata de um conjunto de histórias isoladas, mas, conforme a narrativa se aproxima do final, a autora revela a sutil teia que entrelaça todos os seres. Afinal, nada mais adequado do que a natureza para mostrar como tudo está interligado.
As aves migratórias talvez sejam o melhor exemplo. O impulso vital as faz voar por milhares de quilômetros e, a certa altura, elas esbarram nos arranha-céus do centro econômico de Nova York. É nesse ponto que um dos momentos mais ternos da trama – são vários – ocorre.
Um porteiro recolhe todos os dias, no fim do seu turno, os pássaros caídos, levando-os para o parque próximo de sua casa para enterrá-los. “A menina fará com pauzinhos uma cruz para cada um deles e cantará uma música que inventou para se despedir das aves na temporada anterior de enterros”, escreve a colombiana.
Um ornitólogo que monitora uma das aves estranha o resultado do geolocalizador e resolve ir até o local. Ali, ele se depara com o pequeno cemitério anônimo de aves.
O romance mostra que histórias de animais não são exclusividades das crianças. Bichos são temas para adultos, que tanto precisam da sensibilidade e da consciência perdidas.
O historiador Roger Chartier defende que a materialidade de um livro também lhe confere significado – e não apenas as palavras. A edição caprichada de Só Um Pouco Aqui é um exemplo disso. As fotografias escolhidas, seus ângulos e detalhes gráficos fazem do livro um acontecimento nas mãos do leitor. •
Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Histórias de bichos, mas para adultos’
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