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Histórias de bichos, mas para adultos

María Ospina Pizano cria um universo no qual os animais são equivalentes, em importância, à humanidade

Histórias de bichos, mas para adultos
Histórias de bichos, mas para adultos
A autora nasceu em Bogotá, na Colômbia – Imagem: Diego Lafuente
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Por terra ou pelo ar, os protagonistas do romance Só Um Pouco Aqui, da colombiana María ­Ospina ­Pizano, estão em estado de impermanência. São eles duas cachorras de rua, uma ave migratória, um besouro e uma porca-espinho. Todos buscam sobreviver enquanto transitam por um mundo em que as fronteiras nacionais são uma exclusividade humana.

A escolha por um enredo em que bichos são os personagens principais é reveladora de um narrador onisciente que olha para outras espécies como sendo equivalentes, em importância, ao homo sapiens. No universo do livro, os animais são análogos à humanidade – não há diferença hierárquica.

Essa abordagem dos animais já foi experimentada por outros autores. Tolstoi inventou o mais humano dos cavalos em Kholstomér (1886) e Graciliano Ramos criou a magistral cadela Baleia, em Vidas Secas (1938). O que há de diferente em Só Um Pouco Aqui é que os animais não são afetados apenas por decisões humanas, mas por um sistema econômico e político.

No início da leitura, não é descabido pensar que se trata de um conjunto de histórias isoladas, mas, conforme a narrativa se aproxima do final, a autora revela a sutil teia que entrelaça todos os seres. Afinal, nada mais adequado do que a natureza para mostrar como tudo está interligado.

As aves migratórias talvez sejam o melhor exemplo. O impulso vital as faz voar por milhares de quilômetros e, a certa altura, elas esbarram nos arranha-céus do centro econômico de Nova York. É nesse ponto que um dos momentos mais ternos da trama – são vários – ocorre.

Um porteiro recolhe todos os dias, no fim do seu turno, os pássaros caídos, levando-os para o parque próximo de sua casa para enterrá-los. “A menina fará com pauzinhos uma cruz para cada um deles e cantará uma música que inventou para se despedir das aves na temporada anterior de enterros”, escreve a colombiana.

Um ornitólogo que monitora uma das aves estranha o resultado do geolocalizador e resolve ir até o local. Ali, ele se depara com o pequeno cemitério anônimo de aves.

O romance mostra que histórias de animais não são exclusividades das crianças. Bichos são temas para adultos, que tanto precisam da sensibilidade e da consciência perdidas.

O historiador Roger Chartier defende que a materialidade de um livro também lhe confere significado – e não apenas as palavras. A edição caprichada de Só Um Pouco Aqui é um exemplo disso. As fotografias escolhidas, seus ângulos e detalhes gráficos fazem do livro um acontecimento nas mãos do leitor. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Histórias de bichos, mas para adultos’

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