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A vida na encruzilhada

A Companhia de Teatro Heliópolis, que faz 25 anos, cria uma peça inspirada nas experiências dos egressos do cárcere

A vida na encruzilhada
A vida na encruzilhada
Após as grades. A Boca Que Tudo Come Tem Fome (do Cárcere às Ruas) acompanha seis personagens que tentam reinserir-se socialmente, enquanto lidam com as memórias da prisão – Imagem: José Holanda e Rick Barneschi
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No palco, em certas passagens da coreografia realizada em coro, atores e atrizes experimentam, intencionalmente, o desequilíbrio. A instabilidade do movimento foi uma das imagens encontradas por Miguel Rocha, diretor de A Boca Que Tudo Come Tem Fome (do Cárcere às Ruas), da Companhia de Teatro Heliópolis, para representar a sensação relatada por muitos egressos do sistema prisional ao descrever o instante em que se viram, de novo, em liberdade.

O 14º espetáculo do grupo, que está completando 25 anos, compõe uma trilogia informal sobre o sistema de justiça criminal brasileiro. A nova peça, em cartaz desde a quinta-feira 10 no Sesc 14 Bis, em São Paulo, fecha o foco sobre as ­pessoas que saíram da prisão, um grupo social invisibilizado pela sociedade e negligenciado pelo Poder Público. Já tinham sido encenadas (In)justiça (2019) e Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos (2022).

“Se antes de ir para o cárcere o indivíduo já não conseguia exercer plenamente sua cidadania, quando sai, diversos obstáculos – alguns criados pelo próprio Estado – o impedem de se reorganizar de maneira adequada e seguir adiante”, afirma Rocha. O processo de pesquisa e criação do espetáculo, que incluiu debates sobre o assunto, durou dez meses.

O título, A Boca Que Tudo Come Tem Fome (do Cárcere às Ruas), remete a um provérbio associado a Exu, orixá das encruzilhadas e mensageiro entre deuses e humanos.

“Em Heliópolis, convivemos diariamente com a violência. Por isso me interessa lidar artisticamente com essas questões”, diz o diretor Miguel Rocha

A peça acompanha seis personagens, todos com passagem pela prisão, em suas tentativas de reinserção social enquanto lidam com as memórias do período em que estiveram encarcerados.

Não se trata, porém, de uma montagem de cunho realista ou linear. Seguindo a estética da companhia, a encenação combina texto, trilha sonora executada ao vivo por quatro músicos, coreografias e um trabalho cuidadoso de luz.

Em cena estão seis atrizes e atores: Cristiano Belarmino, Dalma Régia, ­Davi Guimarães, Jucimara Canteiro, Klavy Costa e Walmir Bess. Quatro deles são – como Rocha – moradores de Heliópolis, a maior favela de São Paulo em extensão territorial e uma das mais populosas do País. Em 2006, o território, situado na região Sudeste da capital paulista, foi reconhecido pela prefeitura como bairro.

“Em Heliópolis, convivemos diariamente com a violência – não só a física, mas também a psicológica, aquela dos códigos já estabelecidos nos territórios periféricos, seja pelo Estado, seja pelos poderes paralelos”, afirma Rocha. “Por isso, me interessa lidar artisticamente com essas questões.”

Criada em 2000, a companhia conquistou, ao longo desses anos, um público fiel, que costuma lotar as sessões rea­lizadas em sua sede, a Casa de Teatro Maria José de Carvalho. O espaço, no Ipiranga, bairro vizinho a Heliópolis, foi cedido pela Secretaria Estadual de Cultura em 2009. Todas as peças costumam ter temporadas de dois ou três meses na sede, mesmo que estreiem ou circulem depois por alguma unidade do Sesc.

“Olho para Heliópolis como se fosse um microcosmo da sociedade brasileira”, conta Miguel Rocha, que vive na comunidade desde meados dos anos 1990, quando chegou do Piauí. “Nas criações da companhia, sempre buscamos modos de contar as experiências de quem vive na periferia sob outras óticas.”

Vozes da periferia. A nova peça integra uma trilogia informal composta também por (In)justiça (2019) e Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos (2022) – Imagem: Weslei Barba

Em A Boca Que Tudo Come Tem Fome (do Cárcere às Ruas), a experiência retratada é aquela da reinserção social após um período de privação de liberdade. Ao deixar o sistema prisional, os indivíduos lidam não só com a busca por emprego e moradia, mas com deveres práticos, como reativar os documentos.

“Existe uma lógica de abandono organizado que alimenta a violência”, diz Fábio Pereira, membro da Associação de Familiares e Amigos de Presos/as e Internos/as na Fundação Casa Amparar e da Frente Estadual pelo Desencarceramento. “O Estado não consegue ver as pessoas encarceradas como partes da sociedade. Depois de deslocadas do contexto social, elas são jogadas à margem. A inserção social deveria ser pensada antes do cárcere.”

Segundo o estudo O Funil de Investimento da Segurança Pública e Sistema Prisional em 2023, publicado pela Justa, organização que atua no campo da economia política da justiça, as prioridades político-orçamentárias dos estados estão mais voltadas para a entrada no sistema prisional do que para a saída: para cada 5 mil reais gastos com as polícias militar, civil e técnico-científica, 1,2 mil reais foram direcionados ao sistema prisional e apenas 1 real foi investido em políticas para egressos. Foram analisados orçamentos de 22 estados.

A dramaturgia, assinada por Dione Carlos em seu segundo trabalho com a companhia, estrutura a narrativa em torno de Exu e traça paralelos entre a situação dos egressos do sistema carcerário e a dos escravizados recém-libertos a partir da abolição, em 1888. “Desde o primeiro código criminal o objetivo é conter ‘ajuntamentos de pessoas negras’, impedindo-as de viver com a liberdade de ir e vir”, afirma a dramaturga.

Dione lembra que negros e pobres constituem o maior número de pessoas aprisionadas e defende: “Recorrer à história para criar narrativas que problematizem como ela se deu é obrigação da arte. E buscar nos mitos de matriz africana metáforas poéticas é uma forma de render homenagem ao conhecimento e ao legado afro-brasileiros”.

Dione Carlos também criou a dramaturgia de Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos, que estreou em 2022. A peça levou aos palcos, por meio da história de duas irmãs cujas vidas foram marcadas pelo aprisionamento de familiares próximos, uma perspectiva diferente para a questão do encarceramento em massa.

Os dados mais recentes da Secretaria Nacional de Políticas Penais, vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, registram 909.067 pessoas privadas de liberdade. O Brasil ocupa o terceiro lugar entre os países que mais encarceram no mundo, atrás apenas de Estados Unidos e China, segundo o levantamento internacional World Prison Brief.

A dramaturgia traça paralelos entre o presente e o momento pós-abolição, em 1888

A peça (In)justiça, que teve a primeira temporada em 2019, buscou debater a relação entre o encarceramento em massa e a aplicação de uma lógica punitivista que recai reiteradamente sobre as populações marginalizadas e racializadas. O espetáculo, cuja dramaturgia ficou a cargo de Evill Rebouças, pôs em cena os meandros do julgamento por homicídio de Cerol, um rapaz negro da favela cuja trajetória escancarava uma série de omissões do Estado e da sociedade.

As três peças resultaram de processos artísticos contemplados por diferentes edições do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo, iniciativa fundamental de incentivo a projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção cênica.

A companhia, que iniciou sua trajetória com a montagem de A Queda para o Alto (2000), baseada no livro homônimo de Anderson Herzer, soma no currículo a participação em diversos festivais importantes, como o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas e o Porto Alegre em Cena, e vários prêmios.

Os mais recentes vieram com a peça Cárcere ou Porque as Mulheres Viram Búfalos, que conquistou o Shell nas categorias dramaturgia e música, e foi finalista em direção, além de ter recebido também o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em dramaturgia. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A vida na encruzilhada’

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