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O extremo do extremo

O sul-africano Elon Musk lança o America Party e confronta Donald Trump

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Palco. Musk criou um movimento para abrigar o próprio ego. Os investidores não gostaram – Imagem: Molly Riley/Casa Branca Oficial
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O monstro do extremismo de direita é insaciável. Após romper a “parceria” com Donald Trump por considerar uma espécie de traição ao projeto de destruição do Estado o pacote fiscal desenhado pelo presidente dos Estados Unidos, Elon Musk lançou um movimento para chamar de seu. Embora tenha nascido na África do Sul – e, por isso, tenha sido ameaçado de deportação pelo republicano –, o bilionário colocou o patriotismo e a liberdade de expressão sem limites como bandeiras do America Party. Dado o histórico do fundador, a legenda tem tudo para se tornar um palco para seu ego incontrolável e para uma agenda ainda mais radical, anarcocapitalista. O projeto nasce também do rancor alimentado pelo rompimento suburbano com Trump, regado com insultos em praça pública. No início do mandato, Musk chegou a ser apelidado de “copresidente” pela mídia, mas deixou o governo humilhado, diante dos resultados pífios e constrangedores do “Departamento de Eficiência”, criado sob medida para abrigá-lo na Casa Branca.

A desculpa para o fim da relação atribulada foi o pacote fiscal aprovado pelo Congresso, que aumenta o endividamento dos EUA ao longo do tempo. Em 3 de junho, Musk criticou duramente os congressistas que votaram a favor do plano e não poupou nem o presidente. “Desculpe, mas não aguento mais. Este projeto de lei de gastos do Congresso, enorme, ultrajante e cheio de carne de porco, é uma abominação repugnante. Que vergonha para quem votou a favor: vocês sabem que erraram. Vocês sabem disso”, esbravejou em sua conta no X. “Sem mim, Trump teria perdido a eleição, os democratas controlariam a Câmara e os republicanos votariam em 51-49 no Senado. Quanta ingratidão!”

No dia seguinte, Trump devolveu na mesma moeda do ressentimento. “Elon e eu temos um ótimo relacionamento. Não sei se continuaremos a ter”, afirmou a jornalistas no Salão Oval. “Eu o ajudei muito. Ele conhecia o funcionamento interno do Projeto de Lei melhor do que qualquer um aqui presente. Eu não tinha problema algum com ele. De repente, ele tinha um problema, e só o desenvolveu quando descobriu que iríamos cortar a obrigatoriedade de veículos elétricos.”

O bilionário promete ser mais “patriota” que o ex-parceiro

O pacote aprovado realiza, porém, o sonho da extrema-direita mundial e do “governo da caquistocracia”. Haverá uma redução brutal de impostos para os mais ricos à custa do corte profundo de programas sociais, o que vai ampliar a desigualdade no mais desigual país desenvolvido do planeta. No setor de saúde, um dos principais afetados será o Medicaid, que garante cobertura médica para mais de 72 milhões de cidadãos, perto de um quinto da população de baixa renda, incluídos crianças e idosos. As novas regras estabelecem a necessidade de vínculo formal e contínuo de trabalho para os beneficiários. Segundo levantamento publicado pelo Instituto de Política Econômica, os cortes anuais no Medicaid totalizariam, em média, cerca de 70 bilhões de dólares (perto de 400 bilhões de reais), semelhante ao valor que os mais ricos deixarão de pagar anualmente de impostos.

“Fala-se muito, com razão, sobre como Trump destoa da história recente da política norte-americana. A forma como ele age, fala e governa é realmente sem igual. Mas ele também representa a consumação do projeto republicano de poder. Essa nova legislação, com seu ataque frontal às políticas sociais e corte de impostos para os mais ricos, reflete isso nitidamente”, afirma Andre ­Pagliarini, da Universidade da Louisiana. Em uma década, o pacote vai elevar em 3,3 trilhões o déficit dos EUA, calculam economistas. O resultado tende a ser um enfraquecimento da economia e do dólar. Para Musk, a legislação “anula todas as economias de custos alcançadas pelo Doge”. Exagero. Reportagens publicadas recentemente mostram que as decisões tomadas no departamento foram inúteis em alguns casos e desastrosas em outros tantos. No fim das contas, o magnata da tecnologia produziu muita espuma de propaganda.

Musk conseguirá ocupar o lugar de Trump e radicalizar ainda mais o movimento MAGA? Dinheiro não seria um entrave. Homem mais rico do mundo, o sul-africano tem recursos de sobra para sustentar uma campanha nacional, criar estruturas em estados importantes, alimentar as redes sociais e, principalmente, atrair aliados interessados em receber vultosas contribuições de campanha e visibilidade nas plataformas digitais. O ponto, diz Pagliarini, é que a criação de uma nova legenda depende tanto de estrutura quanto de demanda. “Musk claramente tem dinheiro suficiente para superar muitas das barreiras erguidas propositalmente pelos dois principais partidos e driblar obstáculos logísticos. Em relação ao segundo desafio, sou menos confiante. É verdade que, sob Trump, o Partido Republicano radicalizou-se em muitos sentidos, mas o presidente continua bastante popular. Para quem o partido de Musk vai falar?”

O America Party foi recebido com frieza e ceticismo nos altos círculos. No dia seguinte ao anúncio de criação do partido, a Tesla, fabricante dos veículos elétricos do bilionário, perdeu 68 bilhões de dólares em valor de mercado. Os investidores temem que Musk esteja atualmente mais interessado em travar batalhas ideológicas do que em trabalhar pela prosperidade dos negócios. A Tesla, em especial, enfrenta ao mesmo tempo uma concorrência crescente – mais eficiente – e uma rejeição internacional, por conta do radicalismo político do controlador. Do ponto de vista eleitoral, as chances de sucesso da nova legenda são incertas, senão quase nulas, pois o sistema bipartidário dos Estados Unidos criou há tempos uma barreira eficaz contra novos contendores. Há um certo exagero sobre a inteligência de Musk – e seus movimentos recentes enfraqueceram a imagem de “gênio” construída à base de um marketing­ incessante –, mas talvez o magnata só esteja interessado em capturar a atenção a seu favor, sempre benéfico ao business, e tornar mais insano o debate público norte-americano. •

Publicado na edição n° 1370 de CartaCapital, em 16 de julho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O extremo do extremo’

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