CartaCapital
À margem do cais
Nem todos são santos ou qualquer porto é seguro
No cais do porto não há árvores. Tem homens, e armazéns. Tem um muro que mal separa o mundo das alturas dos contêiners coloridos. Tem a soja, que pode parecer caspa caída do cabelo em cima da blusa; e faz um pó branco nas casas. O cão, cheio de musgo. Tudo acontece muito lentamente. ‘São mais de vinte quilômetros’, disse-me o atendente da padaria. Será que é perigoso?, pergunto. Ninguém diz que sim, ninguém diz que não. Sendo declaradamente perigoso ou não, andar na fronteira do cais é ermo, mesmo de dia. Passam caminhões, carretas. E homens.
Nos galpões, contêiners vazios. Penso na pergunta mais óbvia que poderia ser feita ali. (Qual seria?). ‘O que os contêiners carregam? Para não fazer uma pergunta difícil e ficar sem resposta, pensei nesta. Mas também fiquei sem resposta.
Pergunto das associações de caminhoneiros, de temas mais políticos, da MP dos Portos etc. Descubro que estou falando com o homem que vende café, um negro com lábio superior inchado que esconde seus dentes. ‘Olha’, ele disse. ‘Aqui eu ouço muita coisa, mas esqueço de tudo’. A testemunha perfeita, penso. O rapaz do seu lado concorda como se o homem estivesse no palco pregando uma verdade absoluta que merecia uma ajoelhada cabisbaixa dizendo: sim, senhor.
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Tudo enferruja aqui. Há muitas carcaças de caminhões, pedaços de carretas, as partes incompletas ficam ali, estátuas aduaneiras. No muro, a fronteira do mundo com o porto, há desenhos de trabalhadores felizes e frases bonitas sobre qualidade de vida e igualdade entre os sexos. Ando com os braços cruzados e com uma jaqueta anos oitenta que ganhei do meu irmão escondendo o bloco e a caneta. Um estivador tomando o café morosamente se vira quando passo. Não me dá escapatória, o seu olhar não é difuso. Encolho-me. Pouco ônibus, pouco táxi, mapeio o terreno para uma possível fuga.
Vinte e dois quilômetros de morosidade grandiloquente. Passo ao lado de um contêiner. Para atravessá-lo, demoro exatos 18 passos. Ninguém me responde o que há dentro deles. A internet deve me ajudar, além das obviedades logísticas.
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Lugar onde nada é, a passagem pela margem do porto, longe dos seus remetentes, longe dos destinatários. Em trânsito, em espera lenta, quase enferrujada. A maresia ralenta meu pensamento, surge um ônibus e decido pegá-lo. Qualquer outro lugar será menos rarefeito.
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