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Validade vencida

O crescimento da desaprovação a Trump é a maior em um início de mandato

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O republicano fez por merecer – Imagem: Kayla Bartkowiski/AFP
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Em quatro meses e meio de governo, Donald Trump conseguiu, entre tantas idas e vindas, ao menos uma proeza. Nunca um presidente dos Estados Unidos foi tão rapidamente ridicularizado no exterior e reprovado pela maioria dos cidadãos do próprio país. Na comparação com antecessores, o republicano, segundo uma média das pesquisas de opinião, foi o que perdeu mais apoio popular no mesmo período de mandato.

Uma sucessão de decisões erráticas e indefensáveis está na base do declínio, entre elas o fato de Trump ter aceitado o jato de luxo de 400 milhões de dólares presenteado pela família do Catar e o cerco às universidades. No primeiro caso, o presidente dos EUA ignorou as acusações de tráfico de influência, amparado por uma decisão da Corte Suprema que praticamente livra os ocupantes da Casa Branca no exercício do mandato de qualquer punição. No segundo, o republicano ampliou a guerra contra a educação e a ciência. O secretário de Estado, Marco Rubio, determinou às embaixadas, na segunda-feira 26, a suspensão das entrevistas de concessão de vistos a estudantes estrangeiros, fonte de renda importante para o ensino superior. Principal alvo da ira trumpista, Harvard tem 27% de alunos oriundos do exterior. O governo também anunciou o cancelamento de contratos públicos com a instituição avaliados em 100 milhões de dólares. O embate intensificou-se em abril, quando a universidade ingressou com uma ação judicial contra a Casa Branca por conta do assédio. Em uma carta direcionada à comunidade acadêmica, o reitor Alan Garber escreveu: “Nenhum governo, independentemente do partido no poder, deve ditar o que as universidades privadas podem ensinar, quem elas podem admitir e contratar, e quais ­áreas de estudo e pesquisa podem seguir”.

No front externo, Trump tem usado as reuniões na Casa Branca para humilhar aliados, de Volodymyr Zelensky, da Ucrânia, a Cyril Ramaphosa, da África do Sul, que teve de ouvir do republicano que seu país, mantido por décadas em um regime de apartheid, promove um “genocídio” de brancos. Pesa ainda a ameaça de anexação do Canadá e do Canal do Panamá, críticas à Alemanha e sanções comerciais à Dinamarca, maneira de pressionar o país europeu a ceder o controle da Groenlândia. “Enquanto os presidentes anteriores viam aliados como importantes, Trump os considera exploradores”, observa Kenneth Schultz, professor de Ciência Política em Stanford. “Ele ignora a soberania desses Estados, prejudicando a confiança nos EUA e as normas fundamentais de convivência internacional.” No Oriente Médio, o alinhamento incondicional a Israel alimenta a tragédia em Gaza e bloqueia qualquer avanço rumo a um cessar-fogo.

Para o analista britânico Tom ­Stevenson, autor do livro O Império de Outra Pessoa: Ilusões Britânicas e Hegemonia Americana, há, no entanto, mais continuidade do que ruptura na política externa dos EUA. “Trump e a ala democrata do establishment concordam em mais pontos do que gostariam de admitir. No Oriente Médio, a política em relação à Arábia Saudita e a Israel é idêntica. ­Gaza ­continua a ser arrasada. Há até sinais de planos para uma guerra com o Irã. Só podemos esperar que nunca tentem isso de fato.” Trump, lembra Stevenson, difere dos presidentes anteriores por duas características principais: sua obsessão com a balança comercial e sua predisposição a humilhar os aliados. “Ele prefere intimidar a fingir respeito. Recusa-se a tratar Canadá, Alemanha e Grã-Bretanha como parceiros. Isso escandaliza os europeus, mas não representa novidade para Washington, que sempre soube que essas ‘parcerias’ eram ficções diplomáticas.”

Fonte: Agregador de pesquisas/NYT

Os efeitos das decisões externas são sentidos internamente. As novas políticas de imigração, somadas ao desdém de antigos aliados, como o Canadá e a Austrália, afastaram os turistas do país. De acordo com a Pesquisa de Impacto Econômico publicada pelo World Travel and Tourism Council na terça-feira 27, os EUA correm o risco de perder uma receita de 12,5 bilhões de dólares em gastos de visitantes estrangeiros neste ano. Além disso, a guerra comercial com a China levou a um aumento dos preços e da inflação, conforme alertaram economistas de todas as colorações ideo­lógicas. Para conter o efeito, o Federal Reserve tem mantido a taxa de juro em níveis considerados altos para os padrões norte-americanos, o que limita o poder de compra das famílias. Pior, as principais agências de risco rebaixaram a nota de crédito do país. O efeito imediato foi o aumento do custo da dívida, na casa dos 36 trilhões de dólares. Descolado da realidade, Trump insiste que a economia nunca esteve melhor. “A mensagem que a comunidade internacional está recebendo é de que os Estados Unidos são um parceiro imprevisível”, alerta Schultz. “No longo prazo, os aliados precisarão diminuir sua dependência e elaborar novos arranjos de segurança.”

Apesar do desgaste externo e interno, Trump conseguiu aprovar no Congresso, na quinta-feira 22, por apenas um voto, um pacote de medidas que combina desonerações fiscais e aumento no efetivo da patrulha de fronteira. Todos os democratas votaram contra, apoiados por dois republicanos dissidentes. Intitulado “One Big ­Beautiful Bill Act”, para não escapar da breguice característica, aumentará o déficit em 3,8 trilhões de dólares até 2034, de acordo com o ­Congressional ­Budget ­Office. Para­ ­Stevenson, o resultado é um desmonte inconsciente do próprio império. “Trump está lançando um grande ataque à competência básica do Estado”, afirma. “Ele faz parte de uma geração de líderes que não entende mais como o sistema funciona. E como não entende, vai quebrar muita coisa.”

Na rede de tevê CBS, Elon Musk, descrito até recentemente como “copresidente”, dada a sua influência na Casa Branca, declarou-se “decepcionado” com a aprovação do Projeto de Lei. “Ele pode ser grande ou bonito, mas não sei se pode ser as duas coisas. É minha opinião pessoal. E honestamente fiquei decepcionado”, afirmou o bilionário, que recentemente deixou o comando do Departamento de Eficiência Governamental, criado para desmontar o “Estado profundo”, uma obsessão dos trumpistas.

O que era para ser um novo ciclo de hegemonia nacionalista, diz Stevenson, está mais perto de se tornar outro capítulo da decadência norte-americana. “Um imperador louco não significa que o império acabou repentinamente, mas pode significar o começo do fim.” •

Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Validade vencida’

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