Mundo
Até onde vai a tolerância?
Netanyahu enfrenta a desconfiança interna e a desaprovação externa ao radicalizar ações em Gaza


Quando Israel respondeu ao ataque de 7 de outubro de 2024, proclamou dois objetivos: destruir o Hamas e recuperar os reféns. Passados 600 dias de uma operação militar que deixou mais de 50 mil mortos, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu colhe fracasso em ambos – ainda há 58 israelenses sequestrados na Faixa de Gaza, dos quais 35 estão mortos, e o Hamas não apenas continua a existir como dá demonstrações de força ao impor condições para um cessar-fogo.
Diante do insucesso, Netanyahu decidiu apostar numa radicalização tão extrema que a própria opinião pública israelense e os aliados europeus começaram a recuar, enquanto os EUA abriram diálogos alternativos com o Irã e países do Golfo Pérsico. Mesmo que esses gestos não sejam tão definitivos e extensivos a ponto de levar a uma ruptura, eles representam, ainda assim, o maior sinal de descompasso entre aliados desde o início da invasão do enclave palestino.
No campo interno, metade da população israelense acredita que Netanyahu quer estender a operação ao máximo, a ponto de postergar a eleição de 2026. Com isso, ele, que se tornou o mais longevo líder político da história israelense, esticaria ainda mais a sua permanência no cargo, impedindo que a Justiça desse seguimento a processos judiciais iniciados antes do conflito, mas congelados desde então. Para 55% da população, Netanyahu está mais preocupado em não largar o cargo do que em “exterminar” o Hamas e libertar os reféns. Segundo 53%, a liberação dos israelenses em poder do grupo palestino só não ocorre por questões políticas. Os dados são de uma pesquisa publicada no sábado 24 pelo Canal12 de Israel.
Norte-americanos e europeus demonstram impaciência com o premier israelense
Se a situação de Bibi é instável internamente, no campo internacional pode tornar-se ainda pior, como demonstram dois episódios: as críticas crescentes de aliados europeus e o fato de o presidente norte-americano, Donald Trump, ter simplesmente ignorado Israel ao reabrir o diálogo nuclear com o Irã e fazer uma turnê pelos países do Golfo Pérsico, com os quais foram discutidos planos alternativos àqueles propostos por Netanyahu.
Israel havia anunciado, no início de maio, a intenção de remover milhares de palestinos do sul da Faixa de Gaza para anexar militarmente a região. Reservistas foram imediatamente convocados para executar o plano, batizado de Carruagens de Gideão, cujo objetivo é deixar “Gaza completamente destruída” e obrigar a população local a migrar “em grandes números para outros países”, como explicitou o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich. Para piorar, as tropas israelitas bloquearam completamente a entrada de alimentos na Faixa de Gaza. A radicalidade da medida pareceu excessiva até mesmo para aliados europeus que toleraram a longa lista de crimes de guerra acumulados até então.
O uso da fome como arma de guerra contra os palestinos tinha motivado uma ordem de prisão expedida pelo Tribunal Penal Internacional contra Netanyahu em novembro de 2024. Em vez de recuar, ele redobrou a aposta nas medidas que estrangulam a entrada de alimentos agora. Organizações humanitárias internacionais fizeram alertas superlativos sobre o risco da mortandade, tanto no curto prazo quanto nas sequelas deixadas em bebês e crianças com má nutrição ao longo da vida.
Incômodo. Pedro Sánchez, premier espanhol, defendeu a suspensão da venda de armas da União Europeia a Israel, aliado embraçoso a esta altura – Imagem: Jaafar Ashtiyeh/AFP e Governo da Espanha
Todas essas ações radicais combinadas – a remoção forçada da população palestina, a anexação da Faixa de Gaza e o uso da fome como arma de guerra – só serviram para reforçar a percepção de que o verdadeiro objetivo de Israel é mesmo o de promover o genocídio palestino, que é o intento de eliminar total ou parcialmente um determinado grupo humano. Para tentar frear essa radicalização, a Espanha propôs aos países da União Europeia a suspensão de novas vendas de armas a Israel. A Alemanha referiu-se à situação como “insuportável” e a França acelerou as articulações para uma solução de dois Estados. Em 14 de abril, o presidente francês, Emmanuel Macron, conversou por telefone com Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Nacional Palestina, organização que, embora corrupta e ineficiente, é vista como a única alternativa politicamente aceitável a um Hamas que foi declarado inaceitável e proscrito não só por israelenses, mas por europeus e norte-americanos, sobretudo após o massacre de 7 de outubro. Macron e Abbas conversaram sobre a realização, em junho, de uma cúpula, em Nova York, para promover a solução de dois Estados. Mas a resposta de Tel-Aviv foi virulenta. Ron Dermer, ministro de Assuntos Estratégicos de Israel e representante do país nas negociações por um cessar-fogo com o Hamas, disse que, se os europeus apoiarem a criação do Estado Palestino agora, a resposta israelense será a anexação não apenas da Faixa de Gaza, mas também da Cisjordânia, governada pela ANP.
Políticos como Dermer e Smotrich representam os setores mais radicais da política israelense, que, no domingo 25, promoveram manifestações públicas no feriado nacional do Dia de Jerusalém, ou Yom Yerushalayim, que marca a tomada da cidade na guerra de 1967. Nas comemorações deste ano, milhares de jovens saíram às ruas gritando “morte aos árabes”. Para esses, a desaprovação europeia pouco importa. “Temos visto uma série de ações de países que buscam demonstrar desaprovação com as ações de Israel em Gaza. O Parlamento da Espanha aprovou esse embargo de armas e o Reino Unido interrompeu negociações comerciais com Israel”, nota Bruno Huberman, doutor em Relações Internacionais e pesquisador da questão Israel–Palestina. “Os EUA também pressionaram em relação à entrada de alimentos, e o governo israelense deixou entrar alguns poucos caminhões. Além disso, pesou a publicação de um editorial do Financial Times contra as medidas adotadas por Israel.”
Huberman pondera, entretanto, que todo esse movimento tem também uma alta dose de encenação. “O fato de essas pressões terem sido feitas publicamente mostra que esses líderes estão preocupados em dar satisfação a seu próprio público nacional. Então, não é só um aumento da pressão sobre Israel, mas o aumento de uma pressão teatral, porque, se eles quisessem, teriam os mecanismos para impedir Israel de seguir fazendo o que faz em Gaza.”
Efetiva ou não, a pressão europeia mudou o tom das conversas e mostrou a Israel que há limites. Ao mesmo tempo, os EUA aceleraram uma porção de contatos de alto nível no Oriente Médio, sem tomar conhecimento das ressalvas israelenses a essa aproximação. No caso do Irã, Netanyahu havia pedido, na segunda visita à Casa Branca depois da posse de Trump, em abril, que os EUA participassem de um bombardeio às instalações nucleares iranianas. O pedido foi recebido com frieza, pois, àquela altura, o Departamento de Estado estava empenhado em reabrir canais de diálogo, em vez de enviar mísseis contra a região.
Não está claro se os aliados ocidentais vão de fato forçar Israel a interromper o massacre em Gaza
Isso não significa que os métodos de Trump e de Netanyahu sejam diferentes. Foi o presidente dos EUA quem primeiro anunciou de forma mais explícita e despudorada possível a intenção de deportar em massa os palestinos e transformar a Faixa de Gaza num balneário turístico comparável à Riviera Francesa. Trump tem, no entanto, mais interesse do que Netanyahu num cessar-fogo. “Em relação ao primeiro mandato, Trump tem hoje menos espaço de manobra para forçar o que eles chamam de ‘pressão máxima’ contra o Irã, por exemplo, porque, nesses últimos anos, o Irã conseguiu demonstrar que consegue incomodar essa aliança ocidental e provocar danos”, avalia Huberman. As recentes ações iranianas com mísseis e drones, diz o pesquisador, mostraram que EUA e Israel não têm como prover proteção total para suas próprias tropas e para seus aliados na região no caso de uma escalada aérea. Diante da constatação norte-americana de que não consegue derrubar o governo ou paralisar completamente o programa nuclear iraniano, acrescenta Huberman, o caminho pode ser voltar ao acordo intermediado por Barack Obama em 2010, o que limita os objetivos regionais de Israel.
Se tem algo que Trump demonstra é que, sob seu comando, os EUA se movem sozinhos, prescindindo de cooperação com seus aliados históricos e pesando apenas seus próprios interesses comerciais de curto prazo a cada rodada de negociações. No caso dos árabes, Trump aceitou e decidiu incorporar à frota presidencial um Boeing 747 doado pelo Catar. Essa nova forma de lidar com a política externa, fazendo acordos de varejo com base em vantagens comerciais imediatas, tornou-se clara com o abandono da Ucrânia e dos aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte diante da Rússia. Trump passou a discutir um contrato de exploração de recursos minerais com os ucranianos e acenou com o fim dos embargos e das sanções à Rússia, com possibilidade de acordos comerciais abrangentes.
No caso de Israel, um abandono semelhante por parte dos EUA em favor de outros países do Oriente Médio é impensável, mas a coordenação uníssona de norte-americanos e europeus com Netanyahu tampouco continua a ser uma realidade inquestionável. “Vejo Israel perdendo relevância no Golfo, mas não vejo os EUA abandonando Israel. Não acho que as divergências entre Netanyahu e Trump resultem num afastamento mais importante. Trump pode estar insatisfeito com uma intransigência de Netanyahu em fazer concessões para um acordo para um cessar-fogo, que é o que Trump deseja de fato, mas não o vejo exercendo uma pressão máxima sobre Israel”, diz Huberman. •
Publicado na edição n° 1364 de CartaCapital, em 04 de junho de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Até onde vai a tolerância?’
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