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Tapete estendido

País de honra do Marché du Film, o Brasil levará, este ano, a maior delegação da história para o Festival de Cannes

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Projeção. A Vaqueira, a Dançarina e o Porco (AL) e Como Ler o Vento (AM) são dois dos quatro curtas rodados no Ceará a abrir a Quinzena dos Realizadores – Imagem: Marcela Elias e Jamille Queiroz
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Na quarta-feira 14, a ministra da Cultura, Margareth Menezes, abrirá o Marché du Film, em Cannes, o maior mercado do mundo para produções não hollywoodianas. É que, este ano, o Marché, parte do Festival de Cannes, tem o Brasil como país de honra.

Embora essa presença tenha sido anunciada pelo Ministério da Cultura (MinC) uma semana antes da cerimônia do ­Oscar – da qual Ainda Estou Aqui sairia com uma estatueta –, ela vinha sendo negociada desde 2023. Para ser o país de honra do mercado, é preciso, primeiro, pagar por isso. Mas é necessário também, segundo Guillaume Esmiol, diretor-executivo do Marché, atender a uma série de critérios.

Entre eles estão o compromisso do ­país com a indústria internacional; a disposição de agentes públicos e privados de se envolver com a ação; e a existência de oportunidades concretas de coprodução e troca profissional. “O Brasil claramente atendeu a todos esses critérios”, diz ­Esmiol, em entrevista a CartaCapital. “Após destacar dois países europeus, Espanha e ­Suíça, queríamos nos focar na América Latina, e o Brasil foi uma escolha óbvia.”

O status de pays d’honneur fez com que se registrasse um aumento de 50% no número de brasileiros participando do Marché em comparação com anos anteriores. São esperados, de acordo com Esmiol, mais de 400 profissionais do País­ na Riviera Francesa a partir da terça-feira 13, quando começa o Festival: “Esse é um sinal muito forte do novo impulso do Brasil no cenário internacional”.

De Cannes mesmo vêm outros sinais. O mais evidente é a presença de O Agente Secreto, de Kleber Mendonça Filho, na seleta lista dos concorrentes à Palma de Ouro. Bastante significativo também é o fato de a Quinzena dos Realizadores, seção paralela, ser aberta com quatro curtas-metragens rodados em Fortaleza, no Ceará, com equipes locais.

“Queríamos nos focar na América Latina, e o Brasil foi uma escolha óbvia”, diz Esmiol

Os filmes foram realizados dentro do projeto Director’s Factory, iniciativa internacional voltada à descoberta de talentos emergentes no mundo, com foco na coprodução. Seu padrinho no Brasil é o cineasta cearense Karim Aïnouz, que já teve vários filmes selecionados para Cannes.

Os roteiros foram escritos por duplas formadas por um brasileiro e um estrangeiro. Os brasileiros vieram do Ceará (A Fera do Mangue e Ponto Cego), de ­Alagoas (A Vaqueira, a Dançarina e o Porco) e do Amazonas (Como Ler o Vento). Todos os diretores terão ainda a oportunidade de apresentar, no Marché, seus projetos de longas-metragens.

“Essa experiência radicaliza nossa ideia de que o crescimento do cinema brasileiro passa pela formação”, diz Bete Jaguaribe, diretora da Escola Porto Iracema das Artes, que há mais de dez anos conduz um programa de formação implementado pelo governo do Ceará. “Não adianta o Brasil investir só em realização”, completa ela.

Ao enfatizar esse ponto, Bete chama atenção para o que talvez seja uma das grandes novidades da presença brasileira em Cannes este ano: o número de profissionais com pouca experiência que estarão no evento, participando de programas estratégicos do Marché, muitos deles ligados à coprodução e à formação.

“Temos uma delegação com uma diversidade racial e regional como nunca se viu”, destaca Josephine Bourgois, diretora-executiva do Projeto Paradiso, iniciativa filantrópica voltada ao audiovisual brasileiro – que, inclusive, apoia o Director’s Factory.

A primeira ação internacional do Projeto Paradiso foi o apoio à participação de Bacurau (2019) em Cannes. Desde então, o projeto voltou ao festival com ações destinadas a garantir a presença de profissionais brasileiros na cena internacional; este ano, fez parcerias com três iniciativas de formação vinculadas ao evento.

Vitrines. O Agente Secreto concorre à Palma de Ouro. O documentário Para Vigo Me Voy!, sobre Cacá Diegues, foi convidado para a seção Cannes Classics – Imagem: Redes Sociais

“Essa ação no Marché abriu as portas para que, nesta edição, os brasileiros possam estar em alguns dos lugares mais importantes do mundo do cinema”, diz ­Josephine. “Só nós estamos apoiando 23 pessoas. Temos também uma rede de talentos, e 44 pessoas da rede estarão lá. É claro que houve um interesse do Brasil em estar lá, mas, da parte deles, também há um interesse no Brasil como nunca se viu.”

O curioso é que o lugar de país de honra começou a ser negociado bem antes da onda positiva que começou a se formar com o prêmio para o roteiro de Ainda Estou Aqui no Festival de Veneza, em setembro de 2024, e, desde então, só fez crescer. A costura para que o Brasil chegasse com pompa à Croisette começou em 2023.

Nomeada secretária do Audiovisual do governo Lula em janeiro daquele ano, Joelma Gonzaga estava havia quatro meses no cargo quando foi ao Festival de Cannes representar o País: “Quando cheguei, me chamou a atenção a presença da Espanha no festival. Fui então perguntar o que era preciso para um país ser o homenageado”.

A pergunta foi o primeiro de muitos passos e negociações que terminaram na escolha que foi estrategicamente divulgada às vésperas do Oscar, mas que havia sido confirmada no fim de 2024.

No mesmo ano em que Joelma vislumbrou essa possibilidade, os presidentes Emmanuel Macron e Lula anunciaram, para 2025, a Temporada França–Brasil. Na França, os eventos tiveram início em abril; no Brasil, começam em agosto. A presença brasileira no 78º Festival de ­Cannes não está desvinculada desse contexto.

Embora o desembolso tenha sido feito pelo MinC, a ação contou com apoio de Itamaraty e ApexBrasil. Além disso, as empresas municipais SPCine e RioFilme aliaram-se ao MinC e lançaram editais que permitiram o crescimento da delegação brasileira – o próprio MinC lançou editais que estão levando muita gente do setor a pisar em Cannes pela primeira vez.

O Cinema do Brasil, programa de internacionalização, também ajudou a alinhavar muita coisa. “O estande do Cinema do Brasil ocupa o mesmo lugar no mercado há 18 anos”, conta André Sturm, diretor do programa, que tem cerca de 120 associados. “O espaço não mudou, mas foi reorganizado e vai parecer, inclusive, maior. Teremos, por exemplo, uma sala exclusiva para o Ministério. E, com certeza, vai ficar mais cheio do que jamais ficou. Haverá atividades todos os dias.”

Sturm lembra que, em Cannes, o tapete vermelho é para o cinema de autor, mas o mercado, não só. Ali são negociados todos os tipos de filmes não pertencentes às majors de Hollywood. “Não por acaso, Missão Impossível 8 fará lá sua estreia”, diz ele.

Cerca de 400 profissionais irão ao mercado de Cannes tentar negociar projetos

No caso do Brasil, essa vitrine não poderia vir em melhor hora. Além do sucesso recente de Ainda Estou Aqui, O Auto da Compadecida 2, Chico Bento e, agora, Homem com H, nas bilheterias nacionais, o País ganhou o Urso de Prata em Berlim, em fevereiro; o Oscar, em março; e, em abril, uma vaga na competição de Cannes.

Além da grande presença no Marché, o Brasil terá, nas telas, O Riso e a Faca, dirigido por um português, mas produzido pela brasileira Tatiana Leite, e selecionado para a mostra Un Certain Regard; o documentário Para Vigo Me Voy, sobre Cacá Diegues (1940–2025), na seção Cannes Classics; e o curta-metragem Samba Infinito, de ­Leonardo Martinelli, na Semana da Crítica. Marcelo Caetano, diretor de ­Baby (2024), será jurado da Queer Palm 2025, voltado a filmes com temática LGBTQIA+.

Este ano, a subida das escadarias do Palais des Festivals simbolizará também o reerguer de uma produção que, há cinco anos, foi ao chão. Se boa parte dos filmes ainda circula de forma quase invisível, é igualmente verdade que a relação com o público tem sido retomada e que, depois do Oscar, virá um Festival de ­Cannes como nunca antes se teve. •


Uma nova Hollywood

Por trás da criação de uma suposta taxa sobre produções estrangeiras está a insanidade de Trump, mas não só

A dez dias do início do Festival de Cannes, Donald Trump anunciou, por meio da plataforma Truth ­Social, a criação de uma “tarifa de 100%” sobre os filmes “produzidos em terras estrangeiras”.

A medida, segundo ele, é uma reação aos incentivos internacionais que levam as produções estadunidenses a serem rodadas em outros países e fazem a indústria audiovisual do país “morrer lentamente”.

Por trás da suposta medida – que, de tão generalista, não tem como ser efetivamente analisada – está a insanidade de Trump, mas não só.

As produções estadunidenses têm, de fato, migrado. Isso acontece, primeiro, porque as séries e filmes locais fazem parte do modelo de negócios do streaming. Depois, porque as políticas de atração de investimentos para produções hollywoodianas se tornaram comuns mundo afora.

Muitos países atrelam esse tipo de ação – que costuma incluir benefícios fiscais – ao desenvolvimento do turismo, inclusive. Um exemplo comumente citado é o do aumento de turistas na Croácia a partir de Game of Thrones. O próprio Brasil anunciou, em 2024, o projeto de uma Film ­Comission federal voltada a atrair produções estrangeiras.

O que Trump não diz – ou não entende – é que essa globalização faz parte de uma estratégia do próprio cinema norte-americano, que, há décadas, depende do público internacional para ser rentável.

Não custa lembrar que há 78 anos, na rodada do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) de 1947, nasciam as primeiras barreiras tarifárias ligadas aos filmes. O objetivo, então, era proteger os “cinemas nacionais” do poderio norte-americano no pós-Segunda Guerra Mundial.

Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Tapete estendido’

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