Cultura
Viver de modo a criar o post perfeito
Vincenzo Latronico faz um retrato da juventude que se vê quase obrigada a criar uma imagem descolada de si


As Perfeições, do italiano Vincenzo Latronico, é um dos poucos romances recentes a conseguir capturar com precisão a experiência da geração que já nasceu em um mundo conectado. Lançado originalmente em 2022, o livro é finalista do prestigioso Booker Prize International – cujo resultado será anunciado no dia 20 de maio.
Seus protagonistas, Anna e Tom, são dois italianos vivendo em uma Berlim marcada pela gentrificação. O dia a dia deles é conduzido por uma espécie de curadoria estética voltada a criar uma imagem descolada.
Eles moram em Neukölln, bairro que oferece um caldeirão cultural, com experiências gastronômicas, sociais e culturais vindas de diferentes partes do mundo.
O apartamento do casal é organizado com esmero. Tudo ali busca expressar sofisticação, gosto refinado e, sobretudo, um poder aquisitivo que permite o acesso a bens culturais e tecnológicos de ponta, elementos fundamentais para marcar o lugar no mundo dentro de uma geração que expõe, à exaustão, uma autoimagem construída por meio das redes socias.
Latronico, ele próprio um italiano radicado em Berlim, escreve com conhecimento de causa sobre essas experiências voláteis em uma cidade hiperconectada, onde, muitas vezes, o consumo é travestido de vivência cultural.
Sua prosa, seca e precisa, lembra a de um relatório. A narração é destituída de emoções explícitas, espelhando os próprios personagens. É como se a contenção fosse essencial para preservar o verniz cool de uma vida dominada pela aparência e pela lógica da posse.
AS PERFEIÇÕES. Vincenzo Latronico. Tradução: Bruna Paroni. Todavia (112 págs. 59,90 reais) – Compre na Amazon
“O ambiente ao seu redor, que tinham escolhido e criado, onde dormiam e trabalhavam, era a única manifestação tangível de tudo aquilo que eram”, escreve o narrador. Nós, leitores, nunca sabemos ao certo quem são os dois protagonistas – talvez porque nem eles próprios o saibam.
O romance começa com uma epígrafe de As Coisas (1965), de Georges Perec, livro marcado por uma prosa experimental que parece servir de referência estrutural para As Perfeições. Latronico, passadas seis décadas, estabelece um diálogo indireto com o passado descrito pelo autor francês.
E o que se evidencia, ao final, é que o tempo só aprofundou o processo de identificação entre aquilo que somos e aquilo que possuímos, numa fusão entre sujeitos e objetos. Tornamo-nos, cada vez mais, as coisas que temos. •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Viver de modo a criar o post perfeito’
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