CartaCapital
Cartas na mesa
Beneficiários da ordem do pós-Guerra, os EUA decidiram implodir o sistema, mas…


O mundo está mudando de um jeito sutil. Se em outros momentos as mudanças estruturais no curso da história foram marcadas por guerras mundiais, atentados e revoluções, as de agora parecem ocorrer de maneira gradual, e com uma novidade inesperada: é o próprio presidente Donald Trump quem assume o papel de agente de depredação de um poder norte-americano inconteste até aqui. “Os Estados Unidos parecem cansados dos custos da liderança global, e Trump, nesse contexto, funciona quase como um agente desse esgotamento interno. É como se ele fosse um sintoma do declínio da disposição norte-americana para sustentar uma ordem aberta, previsível e multilateral”, afirma o professor de Relações Internacionais Carlos Gustavo Poggio, cujo título de um de seus cursos na graduação é justamente o mundo “pós-Pós-Guerra Fria”, que, na visão dele, já começou.
A história desse poder norte-americano hegemônico e em escala global teve início em 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Depois de terem desempenhado papel central na liberação da Europa e da Ásia da ameaça do nazifascismo, os norte-americanos se arvoraram a defensores do que seria a liberdade contra a ameaça comunista da União Soviética. O período de bipolaridade da Guerra Fria, com um mundo dividido entre o capitalismo e o socialismo, ruiu no breve intervalo que vai de 1989, quando a queda do Muro de Berlim reunificou a Alemanha, a 1991, quando a URSS se desmantelou.
… o custo da transição parece ser o fim da própria hegemonia
Todos os anos subsequentes de preponderância do poder norte-americano foram marcados por dois movimentos que, à primeira vista, parecem contraditórios: de um lado, a concentração de poder nos Estados Unidos, como a potência vencedora das disputas em escala global dos últimos 80 anos. De outro, a defesa de instâncias multilaterais, entre elas a Organização das Nações Unidas, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, apresentados como palcos legítimos nos quais todas as nações, em sintonia, defenderiam um sistema de livre-mercado e de prevalência do modelo ocidental de democracia liberal. Essa visão foi expressada de forma clara um ano antes da queda da URSS, em 1990, na Assembleia-Geral da ONU, em Nova York, quando o então presidente norte-americano, George H. W. Bush, anunciou: “Temos uma visão de uma nova parceria das nações que transcende a Guerra Fria. Uma parceria baseada na consulta, na cooperação e na ação coletiva, especialmente por meio de organizações internacionais e regionais”.
A visão multilateralista propagada por Bush pai nos anos 1990 seria, no entanto, duramente contestada dez anos mais tarde por seu filho mais velho, George W. Bush, que governou os Estados Unidos de 2001 a 2009. Durante o mandato de Bush filho, os EUA sofreram, em 11 de setembro de 2001, o maior atentado terrorista de sua história. A resposta deu-se, primeiro, contra o Afeganistão, país que tinha servido de base para o mentor dos ataques, o saudita Osama Bin Laden. Em seguida, Bush júnior atacou o Iraque, sob o falso argumento de que o regime de Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, que seriam usadas contra os Estados Unidos.
A Organização das Nações Unidas tornou-se uma instituição cosmética – Imagem: Robert Schimdt/FAO
A ação contra a Al-Qaeda no Afeganistão fora aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU, com solidariedade quase irrestrita em todo o mundo, demonstrando que o sistema multilateral defendido pelos EUA reagia rapidamente e a seu favor. Mas a extensão da resposta ao Iraque, um país inocente, quebrou o sistema. Entre os europeus, o único aliado norte-americano que topou a empreitada foi o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, que cairia em desgraça política logo depois, por conta dessa decisão. Naquele instante, “os Estados Unidos optaram por ignorar a ONU e os mecanismos multilaterais, agindo como uma potência revisionista. Esse movimento, vindo da hegemonia, foi o princípio de uma ruptura” em relação ao multilateralismo no qual os próprios norte-americanos tinham apostado desde o fim da Guerra Fria, avalia Poggio.
A ação no Iraque provocou no Conselho de Segurança uma primeira rachadura que, desde então, só aumentaria. Dez anos mais tarde, em 2011, o órgão ainda adotaria a Resolução 1973, que permitia “a tomada de todas as medidas necessárias” para proteger civis ameaçados pelo então presidente da Líbia, Muammar Kadafi. Com base nessa resolução, norte-americanos e europeus apoiaram militarmente as forças rebeldes na caçada ao líder líbio pelas ruas de Sirte até encontrá-lo escondido no esgoto, de onde foi arrancado à força, empalado e morto. A exacerbação do mandato foi a chave para que, a partir da grande crise seguinte, na Síria, o Conselho de Segurança ficasse travado, como está até hoje, impedido de tomar decisões incisivas em graves crises, como na Faixa de Gaza e na Ucrânia.
A queda do Muro de Berlim não marcou o fim da história. A reação dos EUA ao 11 de Setembro deu início à paralisia do Conselho de Segurança da ONU, no qual vigora a mais absoluta interdição – Imagem: AFP Arquivo e Gerard Maliel/AFP
Essa coleção de ações de força deu aos EUA, mais precisamente aos chamados falcões, que são os belicistas, uma sensação de supremacia que levou, sobretudo, os republicanos a desdenhar do multilateralismo erigido em anos anteriores. Essa tendência tornou-se ainda mais radical depois da primeira passagem de Trump pela Casa Branca, entre 2017 e 2021. “Eles, os defensores dessa geopolítica trumpista, diriam que o que sustenta mesmo a hegemonia global norte-americana não é o multilateralismo, mas a força bruta econômica e militar na última instância. Essa é uma leitura superficial da história da ascensão dos Estados Unidos, especialmente do período pós-Segunda Guerra Mundial. Eles acham que podem implodir o status quo construído ao longo de décadas e ainda manter sua posição dominante no mundo. Eu acho que estão muito enganados sobre isso, porque não é apenas o poder de intimidar os outros que tornou possível o século americano”, afirma André Pagliarini, professor de História e Estudos Internacionais na Universidade do Estado da Louisiana. Por isso, observa Pagliarini, “muitos na esquerda norte-americana não enxergam Trump como uma anomalia, e sim como a evolução lógica de W. Bush (filho), que não tinha sanha intervencionista quando foi eleito, mas tomou o rumo que todos conhecemos depois dos ataques do 11 de Setembro. Desse ponto de vista, a dilapidação do poder norte-americano seria um projeto de longo prazo, executado a partir de dentro há ao menos 24 anos”.
Tanto Pagliarini quanto Poggio consideram, no entanto, que as ações tomadas por Trump até agora contribuem para acelerar essa depredação e colaboram para a construção de uma alternativa viável e sustentável à hegemonia norte-americana. Segundo Poggio, em seu primeiro mandato, “Trump testou os limites da ordem liberal, retirando os EUA de organizações, desacreditando a diplomacia profissional e relativizando alianças históricas”. Já no segundo mandato, o republicano levou esse comportamento ao paroxismo, pois rompeu de forma deliberada e aberta com o sistema. “Ele não tenta mais operar por dentro, mas implodir o que resta dele, substituindo normas por barganha, instituições por relações pessoais, e cooperação por coerção. Ele propõe um novo protagonismo norte-americano, não mais como liderança de uma ordem liberal, mas como uma potência que se move por força, interesse e transação, em vez de previsibilidade e norma.”
Os indicadores econômicos e demográficos jogam contra o “Ocidente”
Essas instâncias multilaterais são objeto também de cobiça de potências regionais ou médias, como Brasil, Índia e África do Sul, que reivindicam lugares de maior prestígio e participação. Há uma “demanda por reforma na arquitetura financeira internacional”, resume Ana Saggioro Garcia, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, diretora do BRICS Policy Center de 2021 a 2023. A crise financeira de 2008, considera, terminou por desgastar ainda mais os ícones da ordem multilateral, ao expor falhas do FMI e de outras instâncias de tomadas de decisão em prever e evitar a crise financeira que abalou a economia internacional naquele ano. Desde então, os BRICS – grupo fundado originalmente em 2009 por Brasil, Rússia, Índia e China; acrescido em 2011 da África do Sul; em 2024, de Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã e Arábia Saudita; e, em 2024, da Indonésia – tornaram-se um exemplo de competição com a ordem antiga, dominada pelos EUA e, em segundo lugar, pela Europa.
Os dados jogam cada vez mais contra o chamado “Norte Global”. De acordo com previsão do banco Goldman Sachs, das dez maiores economias em 2050, quatro estarão localizadas na Ásia: China, Índia, Indonésia e Japão. Na Análise de Conjuntura Internacional publicada em 30 de abril pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais, é dito que “o NDB (Novo Banco de Desenvolvimento) e o AIIB (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura) possuem capital autorizado de 100 bilhões de dólares cada um, enquanto os bancos chineses somam ativos acima de 2 trilhões de dólares, superando o volume combinado de instituições tradicionais como o Banco Mundial (286 bilhões de capital subscrito) e o BID (170 bilhões)”. A organização considera que “esse avanço reflete uma transformação na arquitetura financeira internacional, oferecendo alternativas mais ágeis e diversificadas para o financiamento de infraestrutura e desenvolvimento, especialmente em países emergentes”.
O Banco dos BRICS faz parte da nova arquitetura financeira do globo – Imagem: Redes Sociais/NDB
Os números apontam para uma mudança de eixo em curso: “em 2020, o Produto Interno Bruto dos BRICS superou o do G–7 em paridade de poder de compra” e ,“em 2024, os países dos BRICS cresceram 3,8%, enquanto o G–7 cresceu 1,5%”. Além disso, esse grupo de emergentes representa “em torno de 45% da população mundial, aproximadamente, cinco vezes mais que os países do G–7, que somam cerca de 10%” e, em 2024, “os países dos BRICS apresentaram taxas de crescimento populacional superiores às das nações do G–7, influindo no grau de produtividade e de competitividade nas cadeias econômicas de valor”.
As mudanças no eixo do pós-Guerra seriam, portanto, decorrência da combinação entre a entrada em cena desses novos atores reformistas e da aparente fadiga norte-americana em manter a responsabilidade que chamou para si mesmo depois de 1945.
“Se o pós-Guerra Fria foi um período de expansão de instituições e interdependência, o que vivemos agora é um período de fragmentação, competição entre potências e renacionalização das estratégias. Mas o inesperado é que essa nova fase não está sendo imposta de fora, mas gerada no centro hegemônico. É quase como um ‘suicídio estratégico’ de quem, por cansaço, ressentimento ou cálculo, decide que o mundo que construiu não lhe serve mais”, conclui Poggio. •
Publicado na edição n° 1361 de CartaCapital, em 14 de maio de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cartas na mesa’
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