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Crimes sem fim

O True Crime, gênero que veio para ficar, passa a abarcar também acidentes marcantes e casos menos célebres

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Nostalgia e mistério. Bateau Mouche: O Naufrágio da Justiça, da Max, teve o último dos três episódios disponibilizado em 1º de abril e Congonhas – Tragédia Anunciada, da Netflix, estreia no dia 23 – Imagem: Netflix e Max
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O naufrágio do Bateau ­Mouche, o barco de nome francês que afundou na Baía de Guanabara (RJ) no réveillon de 1988 para 1989 soa mais a tragédia do que a crime. O caso, no entanto, foi transformado, quase 40 anos depois, em um True Crime da Max.

Bateau Mouche: O Naufrágio da Justiça, que teve o último episódio lançado em 1º de abril, reconstitui, por meio de entrevistas e dramatizações que evocam imagens do acidente, a sequência de absurdos que levou à morte de 55 pessoas dentre as 142 que compraram um pacote para ver, do mar, os fogos de Copacabana.

A série põe ênfase nas omissões da fiscalização e na prática de suborno que permitiram que um barco de estrutura precária se passasse por uma embarcação de luxo, mas, de forma sutil, acaba também por revelar muito da psique humana – capaz de se autoiludir ou ignorar o sofrimento alheio para não estragar uma festa.

“Bateau Mouche reflete nossas mazelas”, diz a diretora Tatiana Issa. “Algumas coisas, como a falta de justiça, acontecem constantemente. Um crime não é só um assassinato. Pode-se cometer um crime sendo negligente ou praticando suborno.”

Outro acidente tornado True Crime é o do voo da TAM que, em 2007, ultrapassou a pista do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, deixando 199 mortos. Assim como em Bateau Mouche, o subtítulo antecipa a linha narrativa: Congonhas – Tragédia Anunciada. O original Netflix estreia em 23 de abril e, em três episódios, detalha a cadeia de erros por trás do desastre.

O resgate de dois acidentes antigos que, à época, foram amplamente cobertos pela mídia, mas são desconhecidos das novas gerações, mostra que o True Crime, especialmente o documental, não só não era uma onda como passa a abarcar histórias de perfis cada vez mais diversos.

Os documentários baseados em crimes são hoje peça-chave para a constituição dos catálogos das grandes plataformas

“Gosto de pensar nesse tipo de produção como sendo voltada a histórias impactantes. A gente, no fim, está erguendo um grande espelho para que a sociedade se veja”, diz Guto Barra, diretor de Bateau Mouche ao lado de Tatiana. Ambos haviam feito juntos Pacto Brutal: O Assassinato de Daniela Perez (2022), também da Max.

Outra vertente do True Crime que ganha força é aquela voltada a histórias não tão célebres. É o caso de O Pico dos Marins, sobre o desaparecimento do escoteiro Marco Aurélio Simon, de 15 anos, em Piquete (SP), um dos oito títulos do gênero atualmente em produção no Globoplay.

Desde O Caso Evandro (2021), sobre o sumiço do menino Evandro Ramos Caetano, em Guaratuba (PR), em 1992, adaptado de um podcast, o Globoplay produziu mais 13 séries com esse perfil – definidas, internamente, como um subgênero da categoria documentários.

“O Caso Evandro ampliou o alcance e o impacto do podcast, se transformando em um fenômeno que não só promoveu uma reviravolta no caso como foi indicada ao Emmy Internacional”, diz Alex Medeiros, head de Dramaturgia, Documentários e Filmes do ­Globoplay. “Nos últimos anos, houve um aumento substancial na produção e consumo deste tipo de conteúdo e o formato se diversificou, expandindo-se para podcasts, séries documentais e livros.”

Escala. Segundo Alex Medeiros, O Pico dos Marins (no alto), sobre o sumiço de um escoteiro, é uma das oito séries do gênero em produção no Globoplay, que inaugurou o formato com O Caso Evandro – Imagem: Acervo Pessoal, O Caso Evandro e Beatriz Damy/Globoplay

Internacionalmente, o formato tem como marco o podcast Serial (2014), de jornalismo investigativo, hoje propriedade do The New York Times. Já nas telas, ele nasce com Making a Murderer (2015), da Netflix, e O.J.: Made in America (2016), da ESPN.

Embora ambas tratem de assassinatos, a segunda, sobre o julgamento do ex-jogador de futebol americano O.J. ­Simpson, foi bastante elogiada por usar o crime para discutir as tensões raciais da Los Angeles dos anos 1990. Esse recurso, de partir de um crime para colocar em pauta uma problemática mais ampla, tornou-se uma característica comum aos melhores produtos nesse formato.

“A gente busca uma evolução dentro do gênero”, diz Patrício Diaz, gerente sênior de Produção de Conteúdo Não-Ficção da Max, que, apenas em 2022, lançou ­Abdelmassih: Do Milagre ao Crime, PCC: Poder Secreto e Flordelis: Em Nome da Mãe. “Algumas perguntas que nos fazemos são se a história é relevante e se é importante ser contada agora.” Em breve, a plataforma lança O Assassinato do ator Rafael Miguel.

Thaís Nunes, diretora de Maníaco do Parque: A História Não Contada (2024), que ouve as vítimas de Francisco de Assis Pereira, condenado por matar sete mulheres e estuprar outras nove em 1998 no Parque do Estado, em São Paulo, fecha mais o foco: “O True Crime, para mim, tem valor quando levanta uma discussão sobre uma temática universal e olha para problemas da sociedade”.

A análise de risco, a avaliação jurídica do roteiro e do seguro respondem por parte significativa do custo desse tipo de projetos

O documentário produzido pela Prime Video expõe a violência e a irresponsabilidade da cobertura midiática, discute a cultura do estupro e aponta o machismo vigente na polícia – que deu de ombros a algumas denúncias, deixando Pereira à solta.

“O gênero tem tido o mérito de trazer as histórias de crimes de volta sob outras perspectivas”, prossegue Thaís, que teve participação também em Elize­ ­Matsunaga: Era Uma Vez Um ­Crime (2021), da Netflix, que busca compreender a teia de relações e opressões por trás de um assassinato, e PCC, um retrato pungente do abismo social brasileiro.

Produções como Elize Matsunaga, O Caso Evandro e Maníaco do Parque colocam também uma lupa sobre a exploração das tragédias pela mídia – prática que, na década de 1950, Billy Wilder já retratava no filme A Montanha dos Sete Abutres.

Mas é claro que, em meio à vasta produção recente, há de tudo – incluindo sensacionalismo e oportunismo, etiquetas comumente coladas ao formato. Nem todas as séries têm o propósito de levar à reflexão e algumas, com as que tratam da morte da menina Isabella Nardoni e do desaparecimento de Priscila Belfort, irmã do lutador Vitor Belfort, repisam o já sabido.

Como observa Mauricio Stycer, pesquisador de tevê e crítico da Folha de S. Paulo, as séries também tendem a se debruçar, especialmente, sobre vítimas mulheres, e brancas. “Gente pobre está no noticiário criminal todos os dias”, observa ele, que vê o gênero como “filho” dos programas policiais televisivos.

“Esses programas sempre acompanharam os casos ao longo de semanas, com o crime sendo transformado numa novela”, diz Stycer, que escreveu O Homem do Sapato Branco – A Vida do Inventor do Mundo Cão na Televisão Brasileira (Todavia). O gênero, na sua opinião, explora o velho interesse mórbido das pessoas, mas, para se adaptar ao gosto dos assinantes do ­streaming, “veste uma roupa melhorzinha”.

A “roupa melhorzinha” tem a ver com o modelo de negócios das plataformas, baseado em assinaturas. Se a televisão aberta depende da publicidade – cujos valores são diretamente ligados à audiência –,

Max, Netflix e GloboPlay, as três principais produtoras de documentários baseados em crimes no País, dependem da captação e da manutenção de assinantes.

No streaming, uma medida importante do sucesso de uma obra é o tempo de visualização, ou seja, é importante que ela seja acompanhada até o fim. E a narrativa do True Crime, baseada em elementos de mistério, com um labirinto de pistas e narrativas, contribui para que seja difícil pará-la no meio – justamente o segredo das séries de ficção de sucesso. O formato, em seu início, também atendeu à necessidade de conteúdo das plataformas por um custo mais baixo que o da ficção.

Novas vozes. Em O Maníaco do Parque, Thaís Nunes conseguiu ouvir as vítimas – Imagem: Acervo Pessoal

Se, no século XIX, quem desvendada os crimes eram os detetives, esse papel, no True Crime, é dividido entre muitos protagonistas. Vítimas, criminosos, testemunhas, policiais, promotores etc. vão ajudando o espectador a criar novas teses sobre o ocorrido.

Não se trata mais do whodunnit – junção das palavras who has done it, em inglês, que descreve investigações em torno de quem praticou um crime –, e sim do “por que” e “de que maneira”. E como tanto criminosos quanto vítimas são gente de carne e osso, o investimento em análise jurídica e seguro tende a ser muito mais alto do que em outros tipos de obra.

“Quando os produtores nos procuram, a primeira coisa que fazemos é tentar definir, com eles, a linha jurídica a ser seguida”, diz Rodrigo Chacon, sócio do escritório CQS/FV Advogados. É preciso que se decida, por exemplo, se o que servirá de base são os autos judiciais; se será ou não solicitada autorização para os envolvidos; e se os entrevistados serão remunerados.

“Quando se coloca em questão o pagamento de um réu condenado há sempre uma balança ética. É comum que haja a solicitação de um pagamento em contrapartida à participação”, conta Chacon. “Nesses casos, tem se optado por pagar pelo licenciamento de imagens de arquivo ou material autoral pessoal que eles forneçam para a série. E aí tomamos por base o valor de mercado de aquisição de direitos autorais similares.”

Um ponto importante, no que diz respeito aos direitos da personalidade, é o “direito ao esquecimento”, válido tanto para vítimas quanto para criminosos – é justo fazê-las remoer tudo o que passaram? Chacon já lidou com ações dessa natureza, mas, até agora, as decisões do Supremo Tribunal Federal penderam sempre para a liberdade de expressão.

Thaís Nunes, que foi repórter de segurança pública antes de tornar-se roteirista e diretora, conta que, em todos os projetos nos quais trabalhou, a produtora não só contratou uma análise de risco como previu a checagem jurídica do roteiro, linha a linha. “Temos de ter responsabilidade não apenas legal, mas ética, e respeitar as pessoas que confiaram na gente para falar de coisas tão difíceis”, diz.

Tatiana Issa toca no mesmo ponto: “A gente sempre preza por ter um set acolhedor, porque estamos em contato com dores muito profundas”.

Também delicado, do ponto ético, é trabalhar com casos ainda não julgados. Primeiro, porque não é possível definir alguém como culpado sem o encerramento do processo. Depois, porque a ­narrativa pode influenciar decisões da vida real. Stycer chegou a questionar a coincidência temporal entre o lançamento de Flordelis: Questiona ou Adora (2022), do Globoplay, e o julgamento da ré.

As nuances são muitas. Mas, tornadas peça-chave na formação dos catálogos das grandes plataformas, as séries de True ­Crime vierampara ficar e, no caso das melhores delas, também para fazer pensar. •

Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crimes sem fim’

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