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De mãos atadas

Criminosos de guerra desafiam o Tribunal Penal Internacional com o apoio de Estados omissos ou hostis às leis

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Esvaziamento. Após um início alvissareiro no fim dos anos 1990, o tribunal instalado em Haia assiste a um ataque orquestrado a sua legimitidade – Imagem: Redes Sociais/Corte Criminal Internacional
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Quando o Tribunal Penal Internacional foi criado, em 1998, parecia que o mundo tinha entrado numa nova era. Apenas cinco anos antes, em 1993, fora instituído o Tribunal Penal para a Ex-Iugoslávia. Em 1994, chegou a vez do Tribunal Penal de Ruanda. Os anos 1990 também ficaram marcados pelas ações do juiz espanhol Baltazar Garzón, que ousou e logrou processar Augusto Pinochet, quando o ditador deixou o Chile para buscar tratamento médico numa clínica de Londres. Naquele período, estava na moda a ideia da responsabilização penal internacional de criminosos de guerra, genocidas e autores de crimes de agressão e de crimes contra a humanidade. Parecia haver então um consenso a respeito dos limites que o mundo não queria ver infringidos nunca mais.

Segundo esse pensamento, a virada do século viria com a consagração de um desejo alimentado desde a Primeira Conferência da Paz de Haia em 1899, a de que todos os países do mundo se uniriam em torno do ideal comum de abrir mão de um pouco de sua própria soberania para erigir instâncias arbitrais ou penais que se encarregassem de aplicar a lei, substituindo aos poucos as guerras pela diplomacia e pelo direito internacional.

A realidade ocupou-se de mostrar, no entanto, que as coisas não caminhariam assim. Com os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, os EUA – que, num primeiro momento, foram respaldados pelo Conselho de Segurança em seu revide ao talibã no Afeganistão – atropelaram em seguida o multilateralismo e o império da lei ao estender suas operações militares para o Iraque, num gesto vulgar e ilegal que não encontrou respaldo sequer entre parceiros europeus, como a França, muito embora tenha arrastado consigo o então premier britânico, Tony Blair.

Fortalecer o sistema internacional nunca foi unanimidade. Norte-americanos, assim como russos e chineses, jamais aderiram ao Estatuto de Roma, o documento internacional que respalda a existência do Tribunal Penal Internacional. Essas grandes potências militares nunca abriram mão da prerrogativa autoconcedida de poder agir sem limites contra seus inimigos. Mas a Europa inteira aderiu, o que representou um apoio de peso para o lado do mundo que almejava um futuro com relações mais civilizadas.

Pacto. Órban vai deixar o TPI. Netanyahu agradece – Imagem: Attila Kisbeneder/AFP

Com o apoio da Europa, da África e da América Latina e desconfiança dos EUA, da Rússia e da China, o Tribunal Penal Internacional começou por ocupar-se exclusivamente de julgar criminosos de guerra de países africanos, onde supunha que haveria menor resistência, e onde seus trabalhos seriam mais úteis, dada a incapacidade de muitos das Cortes nacionais africanas de julgar seus próprios malfeitores. Em 2009, o então presidente sudanês Omar al-Bashir converteu-se no primeiro chefe de Estado condenado pelo TPI. Assim como ele, todos os alvos de mandado de prisão nos primeiros 14 anos de existência do foro eram de países africanos: República Democrática do Congo, Uganda, República Centro-Africana, Sudão, ­Quênia, Líbia, Costa do Marfim e Mali. Em resposta à seletividade, os líderes do continente ameaçaram abandonar em massa o tribunal, sob o argumento de que se tratava de uma instância neo­colonial. Em 2015, Bashir, então com um mandado de prisão expedido pelo TPI, visitou ­Johannesburgo. Pelas normas do Estatuto de Roma, a África do Sul, Estado signatário, estava obrigada a prender o sudanês e entregá-lo ao TPI, mas não o fez. Desde então, a situação tem se repetido, com criminosos de guerra condenados a viajar pelo mundo e receber proteção de líderes de Estados signatários que teriam a obrigação de prendê-los e deportá-los, mas se recusam.

O Brasil assinou o estatuto. Mesmo assim, convidou em setembro passado o presidente russo, Vladimir Putin, a visitar o país durante a reunião de cúpula do G20, em novembro. Se levasse a sério ­suas obrigações, o Estado brasileiro teria de capturar Putin no Rio de Janeiro, pois o TPI havia expedido contra ele uma ordem internacional de captura em março de 2023, por crimes cometidos na guerra da Ucrânia. A Rússia, como tal, não é signatária do Estatuto de Roma, mas o TPI alcança os cidadãos russos que tenham cometido crimes no território de um Estado signatário, caso da Ucrânia. O Brasil não deveria, portanto, ter convidado ­Putin. Mas, em vez disso, o presidente Lula notabilizou-se por depreciar essa instância da justiça internacional, dizendo que “nem sabia da existência” dela.

A situação se repetiu recentemente quando o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, recebeu em Budapeste, em 3 de abril, seu homólogo israelense, Benjamin Netanyahu, contra o qual existe, desde novembro de 2024, uma ordem de prisão por crimes de guerra cometidos contra os palestinos na Faixa de ­Gaza. Assim como no caso da Rússia, Israel não é signatário do Estatuto de Roma, mas os crimes atribuídos a Netanyahu foram cometidos no território palestino, cujo governo tem, por decisão da Assembleia-Geral da ONU de 2012, a prerrogativa de aderir a tratados internacionais, incluindo o que assenta as bases para o TPI, o que foi feito em janeiro de 2015.

Os mandados de prisão são ignorados com frequência até por signatários do Estatuto de Roma

Orbán entende, no entanto, que o TPI “se tornou político” e, por isso, anunciou que a Hungria vai “denunciar” o Estatuto de Roma, expressão que no meio diplomático significa retirar-se da jurisdição da Corte. Netanyahu, claro, agradeceu a Orbán: “Você está ao nosso lado na União Europeia, você está ao nosso lado na ONU e agora tomou uma posição corajosa e baseada em princípios contra o TPI. É importante que todas as democracias enfrentem essa organização corrupta”.

A maior ameaça ao Tribunal Penal Internacional não vem hoje dos três únicos países – Burundi, Hungria e Filipinas – que anunciaram a saída da jurisdição da Corte, mas dos 124 que permanecerão sem cumprir suas obrigações e de outros tantos que, a começar pelos EUA, nunca aderiram.

A omissão daqueles que ficam, a do Brasil incluída, é o que mais enfraquece a ideia de perseguição internacional a criminosos de guerra, genocidas e autores de crimes de agressão. Um sistema robusto de responsabilização internacional, mesmo com suas insuficiências, imperfeições e disputas só será possível com a participação efetiva de Estados comprometidos com esse ideal. Mas os anos 2020 têm sido pródigos em sinais de que as promessas dos anos 1990 podem estar ficando para trás. •

Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘De mãos atadas’

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