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O Supremo precisa garantir o mínimo de proteção aos trabalhadores plataformizados, afirma presidente da ANPT

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Origem. A liberação irrestrita das terceirizações abriu uma caixa de Pandora, lamenta a procuradora – Imagem: Redes Sociais/ANPT e Rovena Rosa/Agência Brasil
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Quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral de um caso que discute a existência de vínculo empregatício entre motoristas de aplicativo e plataformas digitais, a Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho se inscreveu como amicus curiae no processo. Não à toa: o resultado do julgamento pode definir não apenas o futuro de 1,5 milhão de trabalhadores plataformizados, segundo estimativa do IBGE, mas também o da própria Justiça do Trabalho, cuja competência tem sido progressivamente esvaziada desde a liberação irrestrita das terceirizações.

Agora, em seu congresso anual, nos dias 10 e 11 de abril, a ANPT convidou nomes como a ministra Cármen Lúcia, a filósofa Djamila Ribeiro, o economista José Dari Krein e a historiadora Priscila Cupello para discutir as transformações no mundo do trabalho, e como garantir um mínimo de proteção a quem atua na informalidade. A diversidade de especialistas reflete a complexidade do tema, afirma a procuradora Adriana Augusta de Moura Souza, presidente da entidade. “No fundo, precisamos discutir que país a gente quer. Vamos deixar cada um por si?”

CartaCapital: O trabalhador plataformizado é autônomo ou empregado?
Adriana Augusta de Moura Souza: É uma questão complexa. O Ministério Público do Trabalho investigou diversas plataformas, tanto as que oferecem transporte de passageiros, como Uber e 99, quanto aquelas que ofertam serviços de entrega. Foi identificada uma série de características que configuram uma típica relação de emprego. Esses trabalhadores recebem ordens, trabalham quase todos os dias para a mesma empresa, essa atividade costuma ser a única fonte de renda… O que expusemos ao Supremo Tribunal Federal, em uma audiência pública convocada pelo ministro Edson ­Fachin, é que os motoristas e entregadores de aplicativo poderiam ser considerados trabalhadores avulsos. Existe essa figura jurídica no País. Eles ficam à disposição do tomador de serviço e, quando são chamados, podem aceitar ou recusar a convocação. Mesmo assim, têm garantidos todos os direitos previstos no artigo 7º da Constituição, como férias, 13º salário, descanso semanal e horas extras. Ah, essa é uma posição unânime nas ações civis públicas? Não, não é. Mas não podemos deixar esse pessoal na informalidade, sem qualquer proteção.

“Muitos entregadores de aplicativo encaram jornadas semelhantes às dos operários de fábricas do início do século XX”, observa

CC: Hoje, eles não têm respaldo nem mesmo quando sofrem um acidente…
AAMS: Exatamente. Segundo uma pesquisa recente do IBGE, apenas 22,3% dos trabalhadores plataformizados contribuem para a Previdência. Eles são mal remunerados e trabalham 46 horas semanais, acima da média nacional, que é de 39,6 horas. Os motofretistas enfrentam uma jornada ainda maior – eles estão literalmente correndo para trabalhar. Não é à toa que os acidentes com motos estejam crescendo muito nas grandes cidades.

CC: Qual é a sua expectativa em relação ao julgamento no STF?
AAMS: Não tem como prever se a tese vai vingar. Temos alguns ministros mais sensíveis ao tema, que já expuseram preocupação com a situação desses trabalhadores em palestras e congressos. Vivemos, porém, um momento de inflexão dos direitos trabalhistas no Supremo. Após a reforma de Michel Temer, a Corte avalizou a terceirização em todas as atividades empresariais. De lá para cá, os ministros têm proferido uma série de decisões monocráticas em favor das empresas. Aparentemente, eles entendem que qualquer tipo de contratação hoje é válida – inclusive essas contratações de índole civil, e não trabalhista, que ocorrem nos aplicativos.

CC: Até o Supremo decidir, os processos relacionados aos plataformizados permanecem parados na Justiça do Trabalho?
AAMS: O Tribunal Superior do Trabalho tem suspendido a análise do mérito desses processos até o STF tomar uma decisão – até porque esse caso terá repercussão geral. Ou seja, o entendimento firmado pelo Supremo deverá ser seguido por todos os demais tribunais, tem efeito vinculante.

Alternativa. Em uma audiência pública convocada pelo ministro Fachin, a ANPT defendeu que os plataformizados sejam considerados trabalhadores avulsos – Imagem: Arquivo/STF

CC: Outro efeito deletério da liberação irrestrita das terceirizações é a “pejotização” dos trabalhadores. Hoje todo mundo é empresário…
AAMS: É verdade. A exacerbação do individualismo chegou ao mundo do trabalho. Hoje, vemos uma estigmatização do trabalhador celetista, com carteira assinada. Todo mundo quer ser empreendedor. Esse é o mantra de hoje, passado pela mídia, pelos influenciadores digitais. Já vi até criança reproduzindo esse estigma. Por trás disso tudo, tem a decisão do Supremo que autorizou as terceirizações e essa profusão de decisões monocráticas que pendem para as empresas. A reforma de Temer alterou o que chamamos de morfologia do trabalho, porque abriu espaço para várias formas de contratação. Só que essas outras formas não têm o lastro social da CLT, com um conjunto de direitos que preserva a segurança, a saúde e a própria dignidade humana.

CC: Parece que a CLT – e a própria Justiça do Trabalho – está com os dias contados.
AAMS: Parece mesmo, mas temos a Constituição Federal. Logo no primeiro parágrafo, ela apresenta os “valores sociais do trabalho” como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. No artigo 3º, afirma-se que um dos objetivos da República é erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. Como podemos conciliar o que a Carta de 1988 determina com a terceirização irrestrita? Como garantir o mínimo de formalismo no mercado? O que temos visto hoje, em nossas investigações, é a exploração do trabalho de qualquer maneira. Tem carvoeiro do norte de Minas Gerais, de onde eu vim, que agora é “autônomo”. Como, se ele recebe ordens, precisa bater meta de produção e não tem dinheiro nem para a refeição no fim do dia? Esse é o grande drama. Essas pessoas não têm acesso à Previdência. O que vai acontecer quando envelhecerem ou se forem vítimas de algum acidente incapacitante?

“Muitos entregadores de aplicativo encaram jornadas semelhantes às dos operários de fábricas do início do século XX”, observa

CC: Por falar nisso, como fica a sustentabilidade da Previdência Social com tantos trabalhadores sendo forçados a abrir uma MEI e, portanto, fazendo contribuições ao INSS muito inferiores do que pela CLT?
AAMS: A sua pergunta já traz a resposta. Ela não se sustenta. O que precisamos – e o Ministério Público do Trabalho tem se empenhado muito em promover esse debate – é discutir todas as implicações de uma decisão como essa. Tem a questão econômica, mas também a previdenciária, a saúde do trabalhador. No fundo, precisamos discutir que País a gente quer. Vamos deixar cada um por si? Quando falamos dos aplicativos, precisamos lembrar que tudo pode ser plataformizado. É possível contratar uma faxineira em um clique. Vamos deixá-la sem direitos básicos? Nosso Congresso visa justamente ampliar esse debate. Por isso, chamamos profissionais de outras áreas para fazer essa reflexão mais ampla conosco. Estamos passando por grandes transformações não apenas no mundo do trabalho, mas em toda a sociedade, com a tecnologia influindo cada vez mais na vida das pessoas e nas relações sociais. O mundo está mudando muito rapidamente, e a legislação não está conseguindo acompanhar.

CC: Como você avalia o movimento pelo fim da escala 6×1, com seis dias de trabalho e apenas um de descanso?
AAMS: A redução das jornadas é um debate pulsante há anos. Na primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, esse tema já estava em evidência, porque as pessoas trabalhavam 14, 16 horas por dia. Hoje, a legislação brasileira só permite 8 horas – mas isso é para quem é empregado, e a informalidade é gigantesca. Muitos desses entregadores de aplicativo enfrentam jornadas semelhantes às dos operários de fábricas do início do século XX. Por isso, acho que não devemos nos ater apenas ao debate da escala 6×1, que atinge um número reduzido de trabalhadores. Claro que estamos atentos a esse debate, é uma causa justa, mas quem está na informalidade trabalha 14 horas por dia para conseguir uma remuneração mínima, e ninguém vê. Nem sequer há fiscalização. Não tem como regular o trabalho de quem é “autônomo” ou “empreendedor”. Hoje, temos muito mais trabalhadores fora do esquema da CLT do que dentro. Por isso, defendemos a ampliação da competência da Justiça do Trabalho. Ela precisa cuidar de toda e qualquer relação de trabalho, e não somente dos empregos formais. •

Publicado na edição n° 1357 de CartaCapital, em 16 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Na corda-bamba’

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