Política
Mãos bobas
A premeditada campanha para minimizar os crimes dos golpistas


Não sei se o caro leitor repara nestas coisas. De uns tempos para cá, tenho percebido uma dissonância cognitiva diferente em Jair Bolsonaro. As mãos do ex-presidente adquiriram vida própria e, em geral, deram para discordar do resto do corpo. Não seria um espanto se, a esta altura, o capitão tentasse fazer um gesto de arminha como na foto que ilustra esse texto e os dedos, em completo desacordo, até em protesto, terminassem por exibir um L de Lula. Digo isso quase aos sussurros, nesta relação particular entre nós, que fique entre a gente, rogo, para não despertar o instinto dos advogados de Bolsonaro. Meu receio é essa observação se tornar um inegável argumento de defesa do réu por liderar uma organização criminosa armada: se ele não consegue controlar as próprias mãos, como seria capaz de orquestrar a abolição violenta do Estado de Direito? A bem da verdade, talvez a ruptura entre as entranhas e as extremidades táteis do acusado justifique o desfecho dos acontecimentos, o fracasso da quartelada. As mãos, na mais simbólica e crucial fraquejada do capitão, não tiveram forças para segurar a caneta que assinaria o decreto do golpe. Tremeram na base.
Bolsonaro também não controla a língua, como perceberam as eminências que aceitaram representá-lo no STF. Fala pelos cotovelos e continua a produzir provas contra si. É uma espécie de Isaac Karabtchevsky desvairado da Orquestra Cacofônica Brasileira, essa desarmonia, tão aleatória quanto intencional, que executa os sons do âmago imoral de uma parte nada desprezível dos donos do poder. O maestro pretende uma coisa, a batuta sugere outra, o bumbo se descontrola, o violino desafina e o gato se acomoda na tuba. A banda, ou o bando, no coreto no jardim planeja atravessar a sinfonia do julgamento dos golpistas.
Ninguém está preocupado com a turba do 8 de janeiro. Ela só serve de biombo para esconder os reais interessados na anistia
O ruído intencional, com a particular contribuição da mídia “profissional”, conforme ressalta à página 20 Eliara Santana, dedicada aos estudos do ecossistema de desinformação vocalizado País afora, produz um barulho ensurdecedor para confundir a plateia. Da partitura cheia de emendas salta o soneto que suaviza a gravidade da tramoia golpista. O Brasil esteve à beira de uma sedição clássica, com tropas nas ruas, ensinada em manuais do século passado. Como nota o cientista político Cláudio Couto à página 19, se a intenção fosse realizar protestos pacíficos, os acampamentos teriam sido montados em frente aos tribunais ou às igrejas, não diante de quartéis. Não se tratou de um passeio no parque nem de velhinhas com a bíblia na mão, relembra incansavelmente o ministro Alexandre de Moraes. A turba, incluída a saltitante cabeleireira do batom, queria sangue. Sabia exatamente o que fazia no 8 de Janeiro. A reportagem de Maurício Thuswohl a partir da página 12 detalha as punições aplicadas pelo STF até o momento. Tudo nas “quatro linhas”, nos limites da lei. Os réus estão protegidos pelo Estado de Direito contra o qual investiram. Mais de 500 assinaram acordos de não perseguição penal. Pagaram uma multa, se afastaram do ambiente tóxico das redes sociais e de gruja aprenderam alguma coisa sobre o valor da democracia – educação nunca é demais. Os presos em regime fechado cumprirão um sexto da sentença antes de obter a liberdade provisória, outro benefício de um regime democrático que a extrema-direita gosta de criticar.
Quem tem pena da bucha de canhão do 8 de Janeiro? Bolsonaro e os seus certamente não. O ex-presidente só enxerga o umbigo, é expert em abandonar os soldados feridos no campo de batalha – a deputada Carla Zambelli não nos deixa mentir. Sua maior paúra é acabar na cadeia aos 70 anos, possibilidade que, segundo ele, selaria o “fim de sua vida”. Definitivamente, a altivez encontra no capitão um terreno incapaz de cultivar. Saberia ele o significado de homúnculo?
Enquanto Bolsonaro enfrenta uma guerra particular com as próprias mãos e a língua, os corneteiros da Faria Lima mantêm absoluto controle sobre os dedos e os anéis. Em um evento recente da banca, o ministro Fernando Haddad foi confrontado com a seguinte pergunta: o Brasil não teria assuntos mais urgentes (e importantes) para tratar do que o julgamento dos golpistas liderados pelo ex-presidente? Haddad, desta feita, nem precisou citar Hegel e Heidegger. Bastou dizer o óbvio: nada é mais importante (e urgente) do que a defesa da democracia. O silêncio sepulcral denunciou a cumplicidade da plateia. Pudera. A verdadeira polarização se dá entre o capital financeiro e as conquistas civilizatórias, incluídos os valores democráticos e republicanos, opostos à lei da selva do anarcocapitalismo tão em voga. É a bolsa ou a vida. Desde as capitanias hereditárias, o segredo é manter uma mão na cumbuca e enfiar a outra onde for necessário para manter as coisas como estão. Serve um cesto de cobras venenosas, um moedor de carne, a boca de um tubarão. Uma ditadura, se for market friendly, está precificada nas mesas de operação. A ordem é comprar. E quanto mais estúpidos os golpistas, melhor para os negócios. •
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mãos bobas’
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