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Falso brilhante

A suspensão de ataques à energia não é uma conquista de Trump, só uma regra da Convenção de Genebra

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À espreita. Putin não se mostra disposto a devolver o controle da usina nuclear de Zaporíjia, cobiçada pelos Estados Unidos. Tropas russas tomam conta da área – Imagem: Fredrik Dahl/IAEA e Gavriil Grigorov/AFP
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O acordo de cessar-fogo selado na terça-feira 25 em Riad, na Arábia Saudita, depois de três dias de negociações mediadas pelos Estados Unidos, parte de um compromisso ilegal: Ucrânia e Rússia prometem suspender os ataques à infraestrutura de energia elétrica que atende à população civil dos dois lados da fronteira.

O presidente norte-americano, Donald Trump, e seus assessores para política externa apresentaram os termos desse acordo como resultado de uma costura política hábil e sofisticada, na qual ucranianos e russos fariam uma grande concessão que poderia pavimentar o caminho para um acordo de paz no futuro. Poucos notam, no entanto, que o objeto central dessa barganha é, em si, um crime de guerra.

Os ataques dirigidos à infraestrutura de energia elétrica já são proibidos pelo Direito Internacional Humanitário, o conjunto de normas que regulam uma guerra. Rússia e Ucrânia vivem um conflito armado internacional desde a anexação russa da Crimeia, em 2014. Nesse contexto, a proteção dos civis e da infraestrutura não-militar, incluindo as usinas de energia elétrica, não passa de uma obrigação legal. “As partes em conflito deverão sempre distinguir entre a população civil e os combatentes e entre os bens civis e os objetivos militares e, consequentemente, deverão direcionar suas operações apenas contra objetivos militares”, define o artigo 48 do Protocolo Adicional I de 1977 às Convenções de Genebra de 1949, ao qual tanto a Ucrânia quanto a Rússia aderiram.

Apesar da proibição expressa em lei, ataques a usinas de geração de energia elétrica têm sido recorrentes no conflito ucraniano. Em dezembro de 2024, forças russas lançaram mais de 70 mísseis e uma centena de drones contra estruturas de produção e de transmissão de energia elétrica, deixando milhares de ucranianos sem luz, aquecimento de água e calefação nas casas, durante um inverno sempre rigoroso. De acordo com o governo da Ucrânia, a Rússia executou 13 ataques massivos contra estruturas de energia do país em 2024.

Neste março, a Rússia culpou a Ucrânia por um ataque a uma estação de gás natural na cidade de Kursk. A localidade estava sob controle do exército ucraniano, que teria explodido a estação antes de se retirar. Kiev negou a acusação. A estação é emblemática, pois havia sido, até janeiro, um ponto de passagem do gás que a Rússia exportava para a Europa, antes dos embargos e sanções terem congelado as relações.

Essa escalada nos ataques à infraestrutura energética deveria ser encarada como um crime de guerra, passível de punição internacional dos envolvidos, mas acabou transformada por Trump num item de negociação, como se as partes tivessem o direito de barganhar se querem ou não parar com essas ações ilegais que sacrificam milhares de civis.

Usinas nucleares, como a de Zaporíjia, na Ucrânia, passam por problema semelhante: de acordo com as normas internacionais, usinas atômicas que geram energia para consumo civil, sem aplicação militar, deveriam ser sinalizadas e poupadas dos efeitos do conflito. A administração desses locais deveria ser sempre civil, sem a presença de forças ucranianas que pudessem justificar ataques russos. Zaporíjia está, porém, sob ocupação de tropas russas desde fevereiro de 2022. Mesmo com o acordo patrocinado pelos EUA a definir a preservação da integridade das usinas de energia, a Rússia disse em comunicado que não pretende devolver o controle da unidade aos ucranianos durante a vigência do cessar-fogo.

Ataques a instalações nucleares constituem uma dupla violação às normas da guerra: punem os civis, que ficam privados de uma energia vital, e ampliam o risco de liberação de material radioativo no ambiente, provocando mortes imediatas em larga escala e a contaminação dos recursos naturais da região afetada ao longo de anos. Não houve acidentes nucleares desse tipo durante o conflito, mas a ameaça é constante.

O objeto central da barganha é, em si, um crime de guerra

Segundo o presidente da Ucrânia, ­Volodymyr Zelensky, os EUA querem tomar Zaporíjia para si, incluindo essa, a maior usina nuclear de toda a Europa, como um dos itens de um acordo mais amplo de exploração de minerais imposto por Trump aos ucranianos a título de ressarcimento pela cooperação militar de Washington nos últimos três anos.

Depois de Zelensky ter revelado que a usina era cobiçada pela administração Trump, a porta-voz da Casa Branca, ­Karoline Leavitt, buscou desconversar. Disse que os EUA estavam recuando da ideia para privilegiar a obtenção de um amplo cessar-fogo agora. Além do item sobre ataques a estruturas de energia, o acordo prevê a proibição do uso de embarcações civis para fins militares no Mar Negro, uma forma de tornar o fluxo comercial mais seguro, permitindo tanto à Ucrânia quanto à Rússia o uso desimpedido dessa rota comercial marítima fundamental para as exportações de suas commodities.

Antes do acordo, a Rússia tinha amea­çado destruir todas as embarcações comerciais da Ucrânia, o que constituiria mais um crime de guerra, na medida em que as ações militares só podem ser dirigidas contra alvos não-civis. Em resposta, os ucranianos passaram a usar drones marítimos não tripulados, que obrigaram a frota russa a se retirar do Mar Negro para evitar perdas custosas.

De acordo com o ministro da Defesa da Ucrânia, Rustem Umerov, o acordo selado agora prevê que os navios militares russos só poderão transitar na porção oriental do Mar Negro, que banha o litoral da Rússia. Entretanto, os russos mantêm uma base naval importante no território ucraniano da Crimeia, anexado há 11 anos por Moscou.

O acordo de cessar-fogo, reiterou a Casa Branca, prevê a “eliminação do uso da força no Mar Negro”, mas a Ucrânia considera que qualquer ataque de seus drones marítimos a embarcações russas na porção ocidental do Mar Negro constituirá “um exercício legal do direito de ­defesa”. O impasse revelado por essas declarações contraditórias só reforça o caráter precário sobre o qual se assenta o acordo mediado pelos EUA. •

Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Falso brilhante’

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