Cultura
A serviço da revolução
Christian Laval se aventura pela ficção para inventar um Marx que foi viver com um povo originário dos EUA


Não é de hoje que Christian Laval é um intelectual mundialmente renomado. Mas eis que o autor de dezenas de livros de sociologia e de história das ideias políticas, como o incontornável A Nova Razão do Mundo (Boitempo), escrito com Pierre Dardot, estreia, aos 70 anos, na ficção.
E não se trata de uma história qualquer. Em Marx na América, lançado recentemente pela editora Champ Vallon (463 págs., 24 euros), na França, ele imagina o que seria a última fase da vida do autor alemão, após a sua presumida morte, em 1883. Física e mentalmente cansado, tomado pela melancolia após uma vida dedicada à revolução que não veio, Marx resolve transmutar-se em etnólogo junto aos Senecas, povo originário do Estado de Nova York. Lá começa uma nova vida, com novos combates.
Quando encontrou CartaCapital para esta entrevista, realizada num café de Paris, Laval tinha acabado de sair da Biblioteca Nacional, onde trabalha alguns dias da semana. Na conversa, ele nos falou desse Marx inesperado, tratou do significado desse desvio tardio pela ficção e, como não poderia deixar de ser, abordou a atualidade desse “outro” Marx num contexto marcado pela ascensão global da extrema-direita.
Marx en Amérique (Marx na América). Christian Laval. Editora Champ Vallon (463 págs., 24 euros) – Compre na Amazon
CartaCapital: Por que o senhor se aventurou na literatura neste momento de sua trajetória intelectual?
Christian Laval: Você usa uma palavra da qual eu gosto muito: aventurar-se. São aventuras, no plural, a da escrita e a do personagem a quem empresto uma vida adicional, passada na América do Norte, junto a um dos povos iroqueses, os senecas. Sabemos que Marx nunca pisou no continente americano, embora estivesse muito interessado nos Estados Unidos na época da Guerra Civil. O ponto de partida da aventura em que o envolvo é o fato de que ele era apaixonado pelos escritos do (antropólogo) Lewis Morgan sobre os iroqueses e outros povos “arcaicos”. Por que fazer um romance sobre isso? O romance é plástico, maleável e pode servir à verdade através da mentira. É um experimento de pensamento que mobiliza a imaginação e nos permite explorar o possível que não ocorreu. Fazer de Marx um personagem fictício nos permite expor sua transformação radical, física, intelectual e emocional – o que eu chamo de um “devir iroquês” de Marx.
CC: Não é difícil reconhecer, no romance, traços do sociólogo Christian Laval. Em que medida esse Marx inesperado se assemelha ao Marx de suas obras sociológicas?
CL: Acho que mudei muito enquanto escrevia este livro – embora menos que meu personagem. De certa forma, o leitor de Marx não pode deixar de pertencer a um momento histórico ou a um contexto intelectual e político. No romance, levo longe esse olhar retrospectivo sobre o personagem. Me diverti multiplicando as referências mais ou menos ocultas à antropologia pós-Morgan: Mauss, Lévi-Strauss, Viveiros de Castro e muitos outros habitam meu personagem, que, em sua investigação e em sua conversão aos costumes iroqueses, refaz grande parte do caminho da antropologia dos séculos XX e XXI. Há no romance uma constante preocupação “situacionista” com o desvio, o plágio, a paródia da narrativa etnográfica e suas formas de abordagem das sociedades indígenas. Levo um pouco mais longe a dimensão estritamente literária das ciências sociais, que Lévi-Strauss ampliou em Tristes Trópicos. No entanto, segui uma regra: meu personagem só tem à disposição o conhecimento sobre a sociedade iroquesa que ele havia reunido em sua época e que poderia ter lido. Em suma, coloquei-me no lugar do etnógrafo que ele poderia ter sido no fim do século XIX.
CC: Às vezes, Engels parece uma espécie de espelho evolucionista de Marx. Como o personagem Engels foi pensado?
CL: Todos os personagens são complexos, duplos, triplos ou quádruplos, como todos nós, e evoluem em direções opostas. Engels é o primeiro marxista, o fiel entre os fiéis. No romance, é o ponto fixo que evidencia as metamorfoses do meu personagem principal. Mas “meu Engels” tem uma outra face, a do amigo perturbado pela decisão de Marx de ir viver entre os iroqueses. Engels rejeita a mudança filosófica de Marx, permanecendo fiel às bases “clássicas” do marxismo, como o determinismo econômico e a centralidade da classe trabalhadora.
Invenções. No livro, Engels é o amigo que fica perturbado diante da guinada filosófica de Marx – Imagem: iStockphoto
CC: Em alguns dos diálogos mais interessantes do livro, Marx reflete sobre a relação entre passado e futuro. Em que medida a dialética entre o que foi e o que virá permite entrever um Marx que se afasta de qualquer fetichização das forças produtivas?
CL: Existe toda uma tradição, há muito abandonada, de se ficcionalizar o pensamento filosófico. Isso era bastante comum no século XVIII. No romance, jogo muito com a filosofia e com a tradição romântica. O livro é repleto de referências à filosofia francesa. Deixo para o leitor identificar um pouco de Lacan aqui, um pouco de Sartre ali, um pouco de Foucault, Derrida ou Deleuze. O livro é uma espécie de caça ao tesouro. Mais especificamente, sua pergunta se refere ao desenvolvimento que me permito fazer da observação de Marx, emprestada de Morgan, segundo a qual a sociedade futura, o socialismo, será um renascimento das comunidades “arcaicas” sob uma forma superior. Há vários diálogos que abordam esse tema. A ideia de um retorno necessário ao passado para avançar em direção ao futuro põe em questão o evolucionismo presente na ideia de progresso do século XIX. Esse não é um aspecto completamente inventado do pensamento de Marx.
“A literatura contemporânea não me parece estar à altura das ameaças que pesam sobre a vida das sociedades e dos seres vivos”
CC: Qual a relevância atual desse Marx inesperado, que teve de “morrer” para “viver” novamente, e que luta pela defesa do comum ao lado de um povo indígena dos Estados Unidos?
CL: Esse Marx é um espectro entre os fantasmas iroqueses. Tomo emprestada a metáfora espectral do Manifesto Comunista de Marx e Engels, que foi retomada em 1993 por Jacques Derrida no livro Espectros de Marx. Todos aqueles que eram dados como mortos, enterrados e desaparecidos devido ao capitalismo e à colonização acabam reaparecendo em novas formas, com novos nomes, com outras roupagens. Espero que o livro ajude a devolver-lhes essa presença perturbadora, que ameaça a ordem estabelecida. Há uma parte do livro chamada “a guerra não acabou”. As lutas contra o colonialismo, o imperialismo e o capitalismo não acabaram e talvez nunca tenham sido tão relevantes quanto neste momento em que vemos como o capitalismo, como Marx previu, devastou o mundo. É isso que meu personagem demonstra quando se torna um guerreiro vingativo. O encontro que imagino entre Marx e os iroqueses é também o encontro entre forças alternativas e de oposição muito diversas que podem formar – e formam, aliás – uma aliança contra o colonialismo e o capitalismo além das fronteiras.
CC: Qual o “poder da ficção”, conforme o subtítulo do seu primeiro livro, diante da ascensão da extrema-direita observado em vários lugares do mundo?
CL: Infelizmente, não vejo hoje na França muitos livros contemporâneos de ficção que me façam querer lutar por outro mundo. Observo o sucesso de uma literatura de direita, cínica ou nostálgica, e, principalmente, de uma literatura centrada na subjetividade infeliz, como se o livro fosse um divã e cada leitor um psicanalista em potencial. É uma literatura do eu sofredor, de sintomas. A literatura contemporânea não me parece estar à altura das ameaças que pesam sobre a vida das sociedades e dos seres vivos. Ela me parece anestesiada, adormecida, domesticada. Não ressoa com as lutas e experiências das pessoas comuns. Meu livro pretende estar “a serviço da revolução” e, poderíamos dizer, hoje mais que nunca, a serviço da vida e da liberdade. •
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A serviço da revolução’
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