Educação
Enel da educação?
Com o aval de Barroso, do STF, Tarcísio de Freitas dá sequência à privatização das escolas estaduais


Sucesso de público e crítica, a série Adolescência, da Netflix, joga luz sobre a “machosfera” e mostra como as famílias perderam o controle sobre o que crianças e adolescentes acessam nas redes sociais. Um detalhe chama atenção: na escola do protagonista Jamie Miller (Owen Cooper), as aulas parecem resumir-se a uma sequência de vídeos e slides, com professores em segundo plano, sem promover qualquer debate ou estimular o pensamento crítico. A arte imita a vida. Em São Paulo, desde o início da gestão do secretário estadual de Educação, Renato Feder, em 2023, professores têm manifestado incômodo com a digitalização total do conteúdo pedagógico.
A “plataformização” tem sido alvo de denúncias por parte dos professores, que acreditam ser este apenas o início de um projeto de desmonte da educação pública, com o objetivo de privatizar completamente o ensino. O receio não é infundado. Além de anunciar o uso de Inteligência Artificial para a produção de materiais didáticos, o governador Tarcísio de Freitas confiou à iniciativa privada, no ano passado, a responsabilidade de construir e administrar 33 escolas estaduais por 25 anos. Acolhendo um pedido do PSOL, o Tribunal de Justiça de São Paulo havia reconhecido a ilegalidade da concessão da gestão de atividades escolares para empresas e invalidado dois leilões realizados pelo governo paulista. No entanto, o processo foi retomado após o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, acolher um recurso da Procuradoria-Geral do Estado.
Com isso, o programa de “parceria público-privada” na educação paulista avança. Em 29 de outubro de 2024, o consórcio Novas Escolas Oeste SP venceu o primeiro lote, ficando responsável pela construção e gestão de 17 unidades de ensino. Dias depois, em 4 de novembro, o SP+Escolas arrematou a concessão de 16 unidades. Além disso, outros 143 colégios existentes também serão entregues à iniciativa privada. “Os investimentos estimados ao longo dos 25 anos de concessão somam cerca de 2,1 bilhões de reais. A atuação do parceiro privado se concentrará exclusivamente na infraestrutura e nos serviços de apoio, sem interferência no conteúdo pedagógico. Estão previstos serviços como construção, manutenção predial, segurança, limpeza, alimentação e outras atividades operacionais de suporte”, informou, por nota, a Secretaria de Parcerias e Investimentos.
Dois consórcios devem construir e cuidar da gestão de 33 unidades de ensino por 25 anos
Dirigente da Apeoesp, o sindicato dos professores paulistas, e deputada estadual pelo PT, Maria Izabel Azevedo Noronha, conhecida como Bebel, disse não ter se surpreendido com o despacho do ministro Barroso, por entender que a decisão da Justiça paulista era frágil, uma simples liminar. Ela assegura, porém, que a disputa judicial sobre a privatização das escolas estaduais está apenas começando: “Mobilizei uma ação civil pública, que resultou em uma sentença proibindo novamente a privatização. O estado pode recorrer, mas agora a batalha jurídica será longa”. Já o colega Guilherme Cortez, do PSOL, se mostra cético quanto à possibilidade de reverter a situação por esse caminho: “O governador faz um lobby intenso junto ao Judiciário, para defender seus interesses. Por isso, é urgente ampliar o diálogo com a sociedade e travar a luta política”.
Antes de assumir a Secretaria de Educação em São Paulo, Feder foi titular dessa mesma pasta no estado do Paraná, governado por Ratinho Jr., onde implementou um modelo similar. No Paraná, as empresas assumiram até o controle pedagógico, podendo contratar ou dispensar os professores das escolas que administram. Esse é o maior temor dos profissionais da educação e dos parlamentares da oposição em São Paulo, explica o deputado estadual Carlos Gianazzi, do PSOL: “Na prática, vemos um ensaio para uma privatização completa, nos mesmos moldes do que foi feito no Paraná.”
De acordo com Salomão Ximenes, professor da Faculdade de Educação da USP, a separação entre gestão administrativa e pedagógica, como tem sido enfatizado pelo governo paulista, “não tem respaldo na Lei de Diretrizes e Bases nem na realidade das escolas”. Essa dissociação pode acarretar dois problemas. “O primeiro, mais evidente, é um possível conflito, em ações cotidianas da escola, entre os gestores pedagógicos, que seguem a lógica educacional, e os administradores privados, focados na máxima eficiência dos recursos. Além disso, haverá o provável fechamento da escola às demandas das comunidades extraescolares, como ações de educação não-formal, participação popular e cultura, que não cabem nessa caixinha fechada, mas são essenciais para a articulação escola–comunidade–família.”
Desmonte. O prefeito alterou o Estatuto do Magistério e precarizou ainda mais o trabalho dos professores da rede municipal – Imagem: Edson Lopes Jr./Prefeitura de SP
Primeiro presidente da Apeoesp, Fábio Moraes concorda com a avaliação: “O aprendizado não se dá apenas em sala de aula, na relação professor e aluno. Ele começa desde o momento em que o estudante sai de casa até o seu retorno. Tudo que diz respeito a uma escola é pedagógico”. Para cobrar reajustes salariais, reivindicar melhores condições de trabalho e alertar a população sobre os impactos negativos das privatizações, os professores da rede estadual devem entrar em greve a partir de 25 de abril.
Na capital paulista, os professores da rede municipal também estão apreensivos com a agenda privatista de Ricardo Nunes, que teve o governador Tarcísio de Freitas como seu principal fiador político na disputa pela reeleição em 2024. “O prefeito claramente deu uma guinada ao bolsonarismo”, observa a vereadora Luna Zarattini, do PT, preocupada com o avanço, na Câmara Municipal, de um projeto de lei para privatizar as escolas municipais, protocolado pela vereadora Cris Monteiro, do Novo.
A proposta prevê a entrega completa de escolas para organizações da sociedade civil (OSCs). “É inconstitucional, porque fere o princípio da autonomia pedagógica”, avalia o vereador Celso Gianazzi, que integra a Comissão de Educação e analisou o projeto. Segundo ele, a lei confiaria à iniciativa privada tanto a gestão administrativa quanto o planejamento pedagógico. “As OSCs poderão definir até mesmo a linha do que será ensinado aos alunos. É um absurdo.”
Na capital paulista, Ricardo Nunes quer “testar o modelo” nas escolas com pior desempenho
Embora o projeto não seja de autoria do Executivo, Nunes tem se manifestado a favor de “parcerias público-privadas” nas escolas. Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, expressou o desejo de “testar o modelo” em 50 escolas com menor desempenho na Prova Paulista. “Nada disso foi oficializado”, protesta o vereador Gianazzi. “O prefeito precisa esclarecer quais escolas serão essas e como será o modelo de privatização.”
No fim de 2024, Nunes sancionou uma lei que altera o Estatuto do Magistério Público. João Batista Paes de Barros Filho, diretor de uma escola municipal, acredita que as mudanças visam “preparar o terreno para a privatização”. Agora, os professores não poderão mais escolher o turno e a turma que irão lecionar, essa decisão ficará a cargo da direção escolar. A nova legislação também afeta a rotina dos docentes substitutos, que ficarão à disposição da Diretoria Regional e poderão ser deslocados para qualquer unidade dentro da região. “É impossível esse profissional criar vínculos ou se integrar ao projeto político-pedagógico de cada escola. É uma tentativa de suprir a falta de professores às pressas, mas que só agrava o problema.” •
Publicado na edição n° 1355 de CartaCapital, em 02 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Enel da educação?’
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