CartaCapital

Delírios tropicais

A pífia manifestação em Copacabana se não atrapalha, também não joga água no moinho da anistia

Delírios tropicais
Delírios tropicais
Uma imagem, mil palavras. Na janela de um edifício em Copacabana, um resumo do evento deprimente – Imagem: Pedro Teixeira/Agência O Dia/Estadão Contéudo
Apoie Siga-nos no

Um estudante de 18 anos salvou o dia dos fotógrafos escalados para cobrir a manifestação em favor da anistia em uma manhã nublada em Copacabana. O imenso cartaz “Sem Anistia”, colado estrategicamente na janela de um prédio nas proximidades de onde se instalou o carro de som do protesto, produziu uma daquelas imagens que valem por mil palavras. E não deixou de ser o resumo do convescote borocoxô na orla carioca. Um levantamento de pesquisadores da USP calculou 18 mil “patriotas” no evento. O ­Datafolha foi um pouco mais generoso: 30 mil. E a Polícia Militar do Rio de Janeiro provou a falta de apetrechos cognitivos para fazer uma conta básica: chutou 400 mil participantes em um perímetro que caberia, no máximo, 185 mil. O governador fluminense, Cláudio Castro, chefe da PM que não sabe calcular, esteve no palanque, assim como o colega paulista, Tarcísio de Freitas, ainda preso a uma certa fidelidade canina ao seu mentor político, o catarinense, Jorginho Mello, e o mato-grossense, Mauro Mendes. A população da cidade estava mais interessada na final do campeonato estadual entre Flamengo e Fluminense. Estrela do ato, o ex-presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de inflamar os fiéis. O senador Magno Malta parecia estar sob efeito de remédios. Tarcísio, vestido com uma camiseta azul da CBF, fez uma média antes de deixar o local e seguir para uma viagem a Londres, onde encontraria investidores estrangeiros.

A eventual aprovação da anistia acabaria no STF

A manifestação pífia talvez não tenha esmorecido as articulações de um projeto de anistia aos envolvidos na tentativa de golpe, mas também não fortaleceu o movimento. A iniciativa voltou ao noticiário em um momento de intensas negociações – e desavenças – entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Falta aprovar o orçamento deste ano, o que deveria ter ocorrido no fim de 2024, a reforma ministerial está incompleta e o Supremo Tribunal Federal ameaça barrar mais uma esperteza dos parlamentares, a manutenção, sob outra rubrica, das emendas sem prestação de contas à sociedade. Não está claro se o renascimento da proposta de livrar a cara dos golpistas é um mero exercício de pressão e chantagem do Congresso ou se prospera, de fato, um acordo para salvar os invasores do 8 de Janeiro em uma primeira etapa e os organizadores da tramoia golpista em um instante posterior. Até agora, o STF condenou quase 500 envolvidos na depredação das sedes dos Três Poderes a penas que chegam a 17 anos de prisão. Adendo: vários dos condenados se recusaram a fazer um acordo de não persecução penal, que previa o pagamento de multa, o abandono da presença nas redes sociais por, no mínimo, dois anos e a frequência em um curso sobre democracia. Grande parte preferiu abraçar o papel de mártir – quiçá certos da anistia.

Na terça-feira 25, a Primeira Turma do tribunal decidirá se acata a denúncia da PGR e transforma em réus Bolsonaro e outros sete acusados de formar o núcleo articulador da tramoia golpista. Segundo o procurador-geral, Paulo Gonet, o ex-presidente liderava uma facção violenta imbuída do propósito de abolir o Estado de Direito. Na quarta-feira 19, em uma prévia do que acontecerá na próxima semana, os ministros da Corte rejeitaram os pedidos da defesa do capitão, do ex-ministro Walter Braga Netto e do general da reserva Mário Fernandes para declarar impedidos os juízes Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin. Os três integram a Primeira Turma ao lado de Carmén Lúcia e Luiz Fux.

Moeda de troca. O projeto para livrar a cara dos golpistas entra no contexto dos atritos entre os três poderes – Imagem: Kayo Magalhães/Agência Câmara

No Congresso, os partidos do “Centrão” fazem o jogo de sempre. Escondem as cartas e blefam na tentativa de levar alguma vantagem a cada rodada. Gilberto Kassab, senhor do PSD e exímio equilibrista, manteve os pés nas duas ­canoas. Metade da legenda, afirmou, é a favor da anistia. Ou seja, a outra metade é contra. Um dos expoentes da agremiação, o ex-presidente do Senado Rodrigo Pacheco rejeitou ocupar um ministério de Lula, mas declarou apoio antecipado à reeleição. Pesa na decisão, de acordo com ele, o fato de o petista defender a democracia. Ao assumir o comando da Casa no lugar de Pacheco, Davi Alcolumbre, do União Brasil, disse que o assunto não interessa aos brasileiros. O presidente da Câmara, Hugo Motta, do Republicanos, prefere a tática do morde e assopra. Ora dá no cravo, ora na ferradura, o que contribui para o clima de incerteza em relação à tramitação do projeto. Aliados do Palácio do Planalto monitoram o desenrolar das negociações no Parlamento. Mais: um projeto de anistia acabaria em xeque na Justiça, por inconstitucional, e elevaria o grau de confronto entre o Congresso e o Supremo.

O deputado Rogério Corrêa, do PT de Minas Gerais, define a proposta como “sem pé nem cabeça” e não vê clima para aprovação. “Como falar em anistia antes do julgamento, principalmente daqueles que planejaram o crime de formação de quadrilha para tentar derrubar um presidente eleito e acabar com nosso direito de fato?”, pergunta. “É um crime grave, tem de ser apurado. Se de fato fossem inocentes, os denunciados não pediriam anistia, diriam que são inocentes e que vão provar a sua inocência.” Nas redes sociais, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, tripudiou: “Com o recebimento da denúncia pelo Supremo, dia 25 de março, a próxima manifestação a favor da anistia deverá ter 1.800 pessoas. Com a condenação, que deverá se dar até setembro, se fizerem outra, estarão presentes 180. Após a prisão não deverá haver manifestação, pois sequer o Bolsonaro estaria presente, por motivos óbvios”. •


A covardia está no sangue

Eduardo Bolsonaro pede arrego aos Estados Unidos

Novilíngua. Para a família, fugir virou ato de bravura – Imagem: Gage Skidmore

A pose é de herói, mas as escolhas são de um pusilânime. Em um vídeo no ­Instagram, o deputado federal Eduardo Bolsonaro anunciou, na terça-feira 18, a decisão de se licenciar do cargo e permanecer nos Estados Unidos, onde está atocaiado desde o Carnaval, supostamente para melhor “combater e denunciar” o que seriam as arbitrariedades do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, no inquérito do golpe. “Bananinha” fez jus ao apelido. Abandonou o rebanho antes de o lobo chegar. O parlamentar não integra a lista dos primeiros denunciados pela Procuradoria-Geral da República, encabeçada por seu pai, mas, tudo indica, não escapará do escrutínio de Paulo ­Gonet. Em sua delação premiada, o ex-ajudante de ordens Mauro Cid informou que Eduardo, ao lado de Michelle Bolsonaro, era um dos mais inflamados defensores de uma quartelada violenta para impedir a posse de Lula. Naquela altura, quando se considerava impune, não lhe faltava destemor. O filho 03 é autor da célebre frase “para tomar o Supremo, basta um cabo e um soldado”. O cabo e o soldado ficaram no quartel, o golpe fracassou e restou ao gabarola pedir colo a Donald Trump. Durante o vídeo, o deputado afirmou temer a prisão. Em entrevistas posteriores, não conteve as lágrimas. Na novilíngua bolsonaresca, fugir virou um ato de resistência. “Não irei me acovardar (oi?), não irei me submeter ao regime de exceção (????) e aos seus truques sujos” (…) Irei me licenciar (…) e buscar as devidas sanções aos violadores de direitos humanos (Dudu, direitos humanos não servem apenas para humanos direitos?). O autoexílio demonstra: a covardia é um traço do DNA da família, está no sangue. Não causaria surpresa se Bolsonaro sênior usasse o mesmo expediente do rebento. Portas (do fundo) abertas em certas embaixadas não faltarão. E a turma ainda queria dar um golpe em nome dessa gente.
– por Sergio Lirio

Publicado na edição n° 1354 de CartaCapital, em 26 de março de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Delírios tropicais’

ENTENDA MAIS SOBRE: , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo