Cultura
Cineasta de Brasília investiga o luto infantil sob o prisma da invenção e da amizade na Berlinale
‘A Natureza das Coisas Invisíveis’ acompanha uma menina de 10 anos que passa as férias no hospital onde sua mãe trabalha como enfermeira


Márcia Bechara, enviada especial da RFI a Berlim
O filme A Natureza das Coisas Invisíveis abriu a mostra Generation Kplus, dedicada a histórias que exploram o universo infanto-juvenil. “Foi a primeira vez que exibimos o filme para grande parte da equipe, então havia uma ansiedade nossa para ver como seria a recepção do público”, contou a diretora Rafaela Camelo.
A sessão, que aconteceu na mostra Generation Kplus, onde a obra concorre com filmes internacionais selecionados pelo festival berlinense, foi marcada por um público predominantemente infantil, com cerca de mil crianças. Mesmo com as barreiras culturais e de idioma, a cineasta se disse impressionada com a capacidade das crianças alemãs de reagirem e se envolverem no filme. “Foi interessante ver como elas se emocionaram e fizeram perguntas. Elas conseguiram se conectar com a história”, relatou.
O olhar das crianças sobre a perda
A diretora, natural de Brasília, também falou sobre a inspiração por trás de A Natureza das Coisas Invisíveis. “O filme conta a história de duas garotas de 10 anos que enfrentam a perda e o luto. Elas se conhecem em um hospital e acabam formando uma forte conexão. O filme tem um tom agridoce, falando sobre amizade, luto e perda. Ele também explora como a infância usa a imaginação e a fantasia para dar sentido às experiências da vida”, explicou a diretora.
A curiosidade infantil sobre o desconhecido molda a trajetória das protagonistas e reflete na estrutura narrativa do filme, que se divide em duas partes: uma ambientada no hospital e outra em um refúgio no interior de Goiás. “É uma metáfora estrutural, como se, naquele ponto, o filme da forma que foi apresentado tivesse que morrer para outro se formar”, contextualiza Camelo.
O tema do envelhecimento, da morte e dos cuidados paliativos, abordado pela perspectiva de duas crianças, também faz parte das temáticas do primeiro longa da diretora. “Existem muitos filmes sobre o amadurecimento ou sobre o luto e a morte, muitos ambientados em hospitais. Eu queria trazer algo novo, colocando uma criança nesse meio e explorando sua perspectiva”, comentou Camelo.
Para a cineasta, a fantasia e a imaginação seriam “ferramentas essenciais” para dar significado a esse tipo de experiências. “Eu queria mostrar que a perspectiva das crianças, ao olhar para a morte, também é válida. Não é um sonho ou delírio, mas uma forma legítima de dar sentido ao que está acontecendo”, afirmou.
Retomada do cinema brasileiro
Sobre o processo de filmagem, a diretora explicou que o longa é uma coprodução entre Brasil e Chile, e vinha sendo desenvolvido desde 2018. A captação de recursos e as filmagens ocorreram na capital federal. “O encontro com a equipe chilena foi fundamental para o financiamento do filme e para estabelecer essa sua marca internacional”, revelou.
Perguntada sobre a retomada do cinema brasileiro, Rafaela falou sobre a situação atual do setor. “No Brasil, vivemos um ano de cada vez. Em 2025, a Berlinale teve 12 filmes brasileiros na programação oficial, o que é um sinal positivo. As histórias brasileiras têm o poder de alcançar o público internacional”, destacou. No entanto, ela também ressaltou que a situação do cinema brasileiro ainda é imprevisível. “Não podemos dar tudo como certo, embora este ano tenha sido mais participativo. Espero que essa presença na Berlinale seja uma tendência, um costume, e não uma exceção”, afirmou.
Confira a seleção brasileira na 75ª Berlinale
- “O Último Azul”, dirigido por Gabriel Mascaro, concorre ao Urso de Ouro, principal prêmio do evento, na competição principal. A trama, que conta com a participação do ator Rodrigo Santoro, segue Tereza, uma mulher de 77 anos interpretada por Denise Weinberg, que é obrigada a se mudar para uma colônia habitacional compulsória para idosos.
- “A Natureza das Coisas Invisíveis”, filme dirigido por Rafaela Camelo, será exibido na seção Generation, dedicada ao público infantojuvenil. A história acompanha Glória, uma menina de 10 anos que passa as férias no hospital onde sua mãe trabalha como enfermeira, e sua amizade com Sofia, que acredita que a piora da saúde de sua bisavó está ligada à internação no hospital.
- “A Melhor Mãe do Mundo”, dirigido por Anna Muylaert, é um drama que será exibido na seção Berlinale Special. A narrativa foca em Gal, uma mãe trabalhadora que luta pela segurança de seus filhos após sofrer abusos do marido. O filme conta com Shirley Cruz e Seu Jorge no elenco, entre outros.
- “Ato Noturno”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, é um suspense erótico que será apresentado na mostra Panorama. O filme segue Matias, um jovem ator em busca do estrelato em Porto Alegre, que mantém um relacionamento secreto com um político, explorando temas de desejo e identidade.
- “Zizi – ou Oração da Jaca Fabulosa” de Felipe Bragança (roteirista do diretor Karim Aïnouz em “Praia do Futuro”) foi selecionado para a seção Forum Expanded da Berlinale, dedicada aos filmes que inovam linguagens e temas.
- “Cartas do Absurdo”, de Gabraz Sanna, é inteiramente falado no idioma tupi, e se inspira em quatro cartas escritas no século 17 para refletir sobre a violência do processo colonial brasileiro, destaque na seção Forum Expanded.
- “De Menor” marca a volta de Caru Alves de Souza à Berlinale com sua nova série, que será exibida em uma sessão especial da seção Generation 14plus. A cineasta brasileira é reconhecida por seu trabalho em filmes como “Meu Nome é Bagdá”, que recebeu o Urso de Cristal na Mostra Generation 14plus da Berlinale em 2020.
- “Arame Farpado”, de Gustavo de Carvalho. O curta foi selecionado para a 75ª edição da Berlinale – Festival Internacional de Cinema de Berlim, participando da competição oficial na seção Generation.
- “Hora do Recreio”, documentário brasileiro dirigido por Lúcia Murat, foi selecionado para a seção Generation. Esta é a terceira participação de Lúcia Murat na Berlinale, onde já apresentou “Maré — Nossa doce história de amor” (2007) e “Doces poderes” (1997). “Hora do Recreio” oferece uma reflexão sobre os desafios enfrentados pelos jovens em contextos de vulnerabilidade social.
- “Iracema, uma transa amazônica”, filme brasileiro de 1974, dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna vai ser exibido eù cópia restaurada na seção Forum Special. Inspirado livremente no romance “Iracema” de José de Alencar, a obra retrata a realidade da Amazônia brasileira durante a construção da Rodovia Transamazônica, explorando temas como exploração ambiental e social.
- “Anba dlo”, curta-metragem de drama produzido no Brasil, Cuba e Haiti, dirigido por Luiza Calagian e Rosa Caldeira. O filme narra a história de Nadia, uma bióloga haitiana que se muda para Cuba para aprofundar seus estudos, deixando para trás sua terra natal e cultura. “Anba dlo” concorrerá ao Urso de Ouro de Melhor Curta-Metragem na seção Berlinale Shorts.
- “Atardecer en América”, de Matias Rojas Valencia, coprodução entre Brasil, Chile e Colômbia. O documentário aborda as complexidades humanas e espirituais das jornadas migratórias na inóspita fronteira entre a Bolívia e o Chile, na seção Generation.
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