Economia
A explicação para a desconcertante gratuidade da IA chinesa DeepSeek
Algum nacionalismo, certo orgulho de engenharia e a necessidade de responder ao profundo desprezo ocidental pela tecnologia chinesa movem o empenho sem fins lucrativos dos desenvolvedores


Este conteúdo foi publicado antes no boletim exclusivo para assinantes de CartaCapital.
O Financial Times seguiu o padrão ocidental hegemônico de interpretação concorrencial ao analisar o estrondoso sucesso do modelo de inteligência artificial da DeepSeek, gratuito e mais avançado que os concorrentes das Big Techs. O impacto foi imediato: as gigantes da tecnologia perderam US$ 1 trilhão em valor de mercado no início do ano, logo após o lançamento da alternativa chinesa. Um baque incomum, especialmente em um cenário onde o mantra dominante no Ocidente é a maximização permanente dos lucros, enquanto o modelo chinês – ao menos por ora – não visa lucro.
A gratuidade da DeepSeek decorre de sua decisão de tornar os modelos open source, permitindo que qualquer desenvolvedor curioso tenha acesso às inovações e explore formas de reduzir custos. Executivos das Big Techs quase infartaram ao perceber que os bilhões investidos em seus modelos proprietários perderam justificativa da noite para o dia. Até agora, não há resposta para o avanço chinês.
Para entender o impacto da DeepSeek, é preciso sair da lógica de mercado emanada dos EUA, explica um artigo do China Talk, veículo especializado em tecnologia e geopolítica.
“Este é o ideal do código aberto: uma livre troca de ideias que permite que inovações se acumulem globalmente. Seus defensores argumentam que isso acelera a ciência, melhora a transparência, distribui a governança e aumenta a competição de mercado”, aponta o site.
O debate entre código aberto e fechado tem dividido a comunidade de IA, já que poucas empresas conseguem encontrar uma justificativa comercial de curto prazo para abrir seus modelos ao público. Mas, no caso da DeepSeek, o lucro nunca esteve no centro da equação.
“Não há justificativa comercial para o sonho da DeepSeek de ‘pesquisa ilimitada'”, afirmou em 2023 o CEO da empresa, Liang Wenfeng.
A High-Flyer Quant, um fundo de hedge especializado em IA, reforça essa perspectiva. “Não estamos nisso pelos retornos financeiros”, declarou recentemente a empresa, acrescentando que suas pesquisas em inteligência artificial não serão usadas para operações financeiras, mas para gerar valor social de longo prazo.
O China Talk argumenta que essa abordagem não é uma fachada do governo chinês, já que o modo de operação da DeepSeek vai na contramão da tradicional indústria estatal chinesa. Seus funcionários, na maioria jovens talentos locais, são movidos por algo além do dinheiro.
Quando perguntado se essa abordagem seria uma loucura, Liang respondeu:
“Não tenho certeza se é loucura, mas há muitos fenômenos inexplicáveis no mundo. Veja os programadores: mesmo depois de um dia exaustivo de trabalho, muitos ainda dedicam tempo a projetos de código aberto. É uma paixão.”
Esse entusiasmo, conhecido como “ethos do código aberto”, é descrito pelo analista Kevin Xu, do blog Interconnected:
“Engenheiros ficam empolgados quando seus projetos open source são adotados por empresas estrangeiras, especialmente do Vale do Silício. Eles dedicam tempo extra para corrigir bugs e aprimorar software, buscando reconhecimento e validação.”
O artigo do China Talk destaca que esse zelo dos desenvolvedores chineses também reflete um desejo de provar seu valor. No Ocidente, a narrativa predominante é de que a tecnologia chinesa é roubada ou fruto de trapaça. Essa percepção gera um sentimento de orgulho e nacionalismo entre os engenheiros chineses, que buscam desenvolver tecnologia própria e demonstrar sua qualidade ao mundo.
O governo chinês já demonstrou apoio ao código aberto em sua estratégia de tecnologia, embora sem mencionar especificamente a IA. Planos de desenvolvimento quinquenais incluem diretrizes para reduzir a dependência da China de software estrangeiro, fortalecendo um ecossistema local autônomo.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.