Cultura
A desinformação como grande vilã
Harari defende, em ‘Nexus’, que as sociedades tomam decisões desastrosas porque são guiadas por más informações


Se somos tão inteligentes, por que tomamos decisões tão estúpidas? Esta é a provocativa pergunta que o historiador israelense Yuval Noah Harari, de 48 anos, busca responder em seu mais novo livro, Nexus – Uma Breve História das Redes de Informação Desde a Idade da Pedra Até a IA, lançado no Brasil em setembro de 2024.
Partindo da premissa – questionável – de que algo está fundamentalmente errado no modo como transmitimos informações ao longo da história, o autor dos best sellers Sapiens e Homo Deus nos convida a acompanhar o papel da comunicação na evolução da sociedade.
Harari sugere que esse sistema apresenta falhas há muito tempo, levando-nos, potencialmente, ao caminho da autodestruição – que, em sua visão, está dobrando a próxima esquina.
Apesar do cenário sombrio que descreve, Harari insiste em se autodefinir como um otimista. A tese central do livro é que, ao longo da história, não erramos apenas por debilidades inerentes à natureza humana, mas também porque fomos guiados por informações de má qualidade. E ele argumenta que ainda há tempo para reverter essa sucessão de erros.
A solução, defende ele, é oferecer às pessoas informações de qualidade. Para o autor, a má informação é responsável por fenômenos como o apoio a ditadores, a eleição de líderes incompetentes ou mal-intencionados e decisões desastrosas que impactam o futuro do meio ambiente e da humanidade.
E o paradoxo atual é que, apesar de termos ferramentas tecnológicas altamente avançadas para tratar informações, estamos perdendo a capacidade de dialogar e debater, justamente no momento em que mais precisamos disso. A partir desse cenário, ele empreende uma análise mais profunda de como a Inteligência Artificial (IA) e os avanços científicos podem causar mais danos do que benefícios.
Harari aponta uma diferença fundamental entre democracias e ditaduras: a forma como cada um dos regimes administra informações. Enquanto as ditaduras se concentram no controle e na manipulação de dados – frequentemente baseados em mentiras –, as democracias têm o potencial de avaliar e corrigir informações incorretas. A avalanche de desinformação alimentada pelas novas tecnologias, no entanto, prejudica essa capacidade.
Na primeira parte do livro, Harari nos conduz por um vertiginoso percurso histórico, conectando eventos como o uso das tábuas assírias, a Revolução Industrial, o Holocausto e até mesmo o impacto da disseminação da televisão na Índia.
Nexus. Yuval Noah Harari. Tradução: Berilo Vargas e Denise Bottman. Companhia das Letras (504 págs., 89,90 reais) – Compre na Amazon
Na segunda metade – a mais interessante –, o foco recai sobre a Inteligência Artificial e os potenciais riscos que ela traz à democracia. “Informação é ferramenta”, enfatiza o autor, e não conhecimento propriamente dito. Segundo ele, a informação, se mal administrada, pode nos levar a um colapso. Seu uso correto, por outro lado, poderia evitar decisões catastróficas.
Harari explora um dos motivos pelos quais a humanidade tem se rendido à desinformação desde a Idade da Pedra: as mentiras são mais atraentes que a verdade. Uma mentira pode ser fabricada para ser convincente e apelativa, enquanto a verdade, sendo complexa e exigente, demanda mais esforço para ser construída e, depois, compreendida.
Ele destaca que a IA, se usada corretamente, poderia promover o acesso de milhões de pessoas a informações confiáveis, ajudando na tomada de decisões políticas, legais e mesmo militares. A mesma IA pode, porém, tornar-se um “telão de silício”, isolando os humanos das decisões críticas sobre seu próprio destino.
Para equilibrar essa balança, Harari defende o fortalecimento de instituições como meios de comunicação, academias e comitês científicos, que atuariam como guardiões da verdade. Ele argumenta que a democracia precisa ir além do ato eleitoral, garantindo mecanismos para fiscalizar e validar informações de modo contínuo e ordenado.
Por isso, afirma, regimes autoritários concentram seu poder nos esforços em deslegitimar as instituições que sustentam a verdade.
O livro também aborda a urgente necessidade de regulamentação da IA. Harari sugere que o controle não se limite ao que os cidadãos publicam nas redes sociais. A ênfase, a seu ver, deveria recair sobre o que os algoritmos fazem com essas publicações.
O autor critica duramente a ideia de se permitir que grandes corporações tecnológicas administrem os algoritmos como bem entendem e propõe maior investimento social em instituições ligadas à sociedade civil que se mostram atentas aos avanços da indústria do algoritmo.
Se a humanidade se rende a esse sistema desde a Idade da Pedra é porque a mentira é mais atraente que a verdade
Comparado a Sapiens e Homo Deus, Nexus é uma obra mais arriscada, pois se apoia em suposições e projeções sobre o futuro. Apesar disso, é inegavelmente útil para que se compreenda o impacto crescente da IA em nossas vidas. O autor argumenta, por exemplo, que a IA poderia estar contribuindo para calcular os danos ambientais e planejar projetos para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Embora a obra traga insights valiosos, Harari parece perder o foco em alguns momentos. Aqui, o estilo claro e meticuloso, sua marca como divulgador científico, cede espaço a uma tentativa de se posicionar como “oráculo” do futuro da humanidade – um caminho no qual se pode facilmente tropeçar.
Ainda assim, Nexus é uma leitura provocativa e relevante, especialmente em tempos de polarização e avanço tecnológico acelerado. Harari, que dedica duas horas diárias à meditação e acredita que isso melhora sua capacidade de reflexão, nos convida a questionar não apenas o impacto da IA, mas a qualidade das informações que moldam nossas decisões. •
Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘A desinformação como grande vilã’
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