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Desata-me ou te devoro

Rebelados, governadores de siglas da oposição recorrem ao Congresso para derrubar os vetos de Lula ao Propag

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Zema tentou constranger o governo federal, mas recebeu uma invertida de Haddad – Imagem: Gil Leonardi/GOVMG
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A dívida dos estados com a União, estimada em 760 bilhões de reais, é um dos nós cegos que amarram o crescimento econômico brasileiro. Qualquer tentativa de solucionar esse antigo problema deveria, portanto, ser encarada pelos governos estaduais como uma boia de salvação, mas a tese não se aplica ao Brasil polarizado de hoje. Com a eleição de 2026 já a despontar no horizonte, o anúncio da sanção com vetos do Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag) pelo governo federal provocou uma onda de fúria nos governadores de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, em uma equação que mistura cálculos econômicos e políticos. As respostas do presidente Lula e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, à “rebelião” dos mandatários foram incisivas, mas um eventual impasse duradouro com Romeu Zema, do Novo, Cláudio Castro, do PL, e Eduardo Leite, do PSDB, possivelmente implicará a derrota política do governo federal em uma iniciativa de interesse federativo e – ao menos deveria ser – apartidária. Os três estados, ao lado de São Paulo, respondem por 90% da colossal dívida com a União.

Incomodou os governadores de oposição os dez vetos anunciados por Lula a itens que previam, por exemplo, a utilização das verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional (FNDR) – criado com a reforma tributária para compensar a perda de arrecadação estadual – para o abatimento dos juros da dívida. Outro veto impede a utilização para o mesmo fim de recursos obtidos com royalties de exploração de recursos naturais como petróleo e gás. Segundo o Executivo, foram vetados todos os pontos aprovados pelo Congresso que implicariam aumento do impacto fiscal e ameaçariam o resultado primário do governo.

O Ministério da Fazenda estima uma perda de 20 bilhões de reais por ano com o Propag. Segundo as novas regras, que substituem o Regime de Recuperação Fiscal de Michel Temer, o estado que conseguir reduzir sua dívida em 10% até o fim deste ano terá a taxa de juros – hoje medida pelo IPCA mais 4% ao ano – reduzida para 2% anuais. Se a redução da dívida chegar a 20%, o estado terá direito a juro zero. O pagamento total da dívida poderá ser feito em até 30 anos e estão previstas diversas formas de abatimento dos juros, como entrega de ativos ou investimentos em educação e segurança pública.

“O projeto não teve vetos, a palavra certa é mutilação”, queixou-se Cláudio Castro. Do mesmo partido de Jair Bolsonaro, o governador do Rio disse que Lula não tem verdadeiro interesse em “ajudar governadores que não estiveram presentes” nas eleições de 2022: “Foi um veto 100% político. Impedir o uso do FNDR, na prática, mata o Propag”. Já Eduardo Leite se disse “indignado” com os vetos que, segundo o governador gaúcho, contrariam a suspensão da dívida por três anos para que o estado possa ­recuperar-se economicamente das enchentes do ano passado. O mais incisivo do trio foi Romeu Zema: “Lula quer obrigar os mineiros a repassarem 5 bilhões a mais em 2025 e 2026, apesar do recorde de arrecadação federal. É dinheiro para sustentar privilégios e mordomias”.

O governo reagiu de imediato. Haddad afirmou que Zema “critica privilégios enquanto sancionou aumento do próprio salário em 298% durante o Regime de Recuperação Fiscal”. Lula chamou de “ingratos” os governadores dos estados que mais devem à União: “Deveriam estar agradecendo ao governo federal e ao Congresso Nacional. Alguns criticam porque não querem pagar, mas agora vão ter de pagar”. Haddad avalia que o Propag foi além do que esperavam os governadores: “Criticar faz parte da vida política, mas eles nem sonhavam com um ato tão republicano”.

Para o economista Luiz Gonzaga ­Belluzzo, colunista e conselheiro editorial de CartaCapital, há nessa celeuma um componente muito mais político do que de racionalidade econômica: “O Propag é uma proposta bem razoável, e esses vetos que Lula fez não prejudicam o conjunto da obra. Os estados podem usar vários instrumentos para reduzir a dívida, o que mais os governadores querem? Nesse quadro do mercado reclamando pelo controle fiscal, os estados têm que dar seu quinhão de contribuição também. Não estou vendo outra explicação para a resistência, a não ser o fato de que a oposição quer destruir o que o governo faz”. Belluzzo destaca a criação do Fundo de Equalização Federativa, que receberá aportes dos estados e também da União até o pagamento completo da dívida: “É uma proposta interessante, pois permite que os estados possam investir”.

Atualmente, a dívida dos estados com a União é estimada em 760 bilhões de reais

Ex-vice-governador do Rio, o deputado Luiz Paulo Côrrea da Rocha, do PSD, avalia que o Propag, em tese, é melhor do que o Regime de Recuperação Fiscal, porque traz a possibilidade concreta de os estados reduzirem o tamanho da dívida e trabalharem com juro zero: “O sonho de todos os estados é abater 20% da dívida com a União”. Politicamente, alerta, a adesão ao Propag é um objetivo a se perseguir: “Se não houver acordo com os governadores, não tem negócio, há uma escalada pela frente. Acenar com o juro zero é um avanço inexorável, mas pagar essa ­entrada da dívida de 20% é um grande desafio. Os estados têm de fazer esse esforço, não pode ser na base do tudo ou nada. A adesão ao Propag é necessária para a saúde dos estados, principalmente aqueles que estão no Regime de Recuperação Fiscal precisam fazer essa adesão”.

Professor da UFRJ e especialista em temas ligados ao desenvolvimento econômico fluminense, Mauro Osório afirma que a maior qualidade do Propag é ser mais flexível: “Trata da queda da taxa de juros, o que antes não havia, é um enorme avanço em relação ao regime anterior”. Ele avalia como uma missão muito difícil para o Rio de Janeiro conseguir obter os 20% para zerar a taxa de juros: “A lei orçamentária deste ano prevê um déficit de 4,6 bilhões, e Castro já vendeu a Cedae. A situação do Rio é muito mais grave do que as de Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul, que ainda têm ativos a negociar. Desde os anos 1970, quando se consolidou a transferência da capital, o estado perdeu uma participação no PIB de mais de 30%, desde 1985 é a unidade da federação onde o emprego formal menos cresceu”, enumera. Ele sintetiza a questão em três perguntas: “O Propag melhora a situação dos estados? Muito. Os estados conseguirão cumprir o acordo? Não sei. O Rio tem feito o dever de casa? Não”.

Os vetos de Lula ainda podem ser derrubados no Congresso. Com reação mais discreta que outros mandatários, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Republicanos, reuniu-se com o presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP, para tratar do tema. Relator do projeto aprovado na Câmara, o deputado Doutor Luizinho, do PP, diz que os vetos “serão derrubados com certeza” quando os governadores exercerem pressão sobre suas bancadas. Aderiram à grita contra o Propag os governadores do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, do MDB, e de ­Goiás, Ronaldo Caiado, do União Brasil, pré-candidato à Presidência em 2026. •

Publicado na edição n° 1346 de CartaCapital, em 29 de janeiro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Desata-me ou te devoro’

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