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A obscura realidade por trás da produção de fibras naturais no Brasil

Das problemáticas que cercam a cadeia produtiva do algodão convencional, já sabemos bem. Mas qual a realidade por trás da produção das outras fibras?

A obscura realidade por trás da produção de fibras naturais no Brasil
A obscura realidade por trás da produção de fibras naturais no Brasil
Plantação e colheia de juta. Foto: ASCOM - FAEA/ SENAR/ FUNDEPEC-AM
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A biodiversidade presente nos diversos biomas do Brasil atrai atenção nacional e internacional, especialmente quando relacionada às oportunidades de bioeconomia. Plantas nativas e exóticas têm sido alvo de exploração por indústrias de grande porte, que alegam buscar alternativas “mais verdes” às matérias-primas sintéticas, como o plástico. Entre essas plantas, destacam-se as fornecedoras de fibras vegetais e celulose, amplamente exploradas atualmente.

Uma das matérias-primas naturais mais produzidas no Brasil é o sisal, fibra extraída da planta Agave sisalana, cultivada principalmente no Nordeste. Outras plantas fibrosas, como a palmeira piaçava, a juta e a malva, também são cultivadas em larga escala para finalidades semelhantes. Apesar do potencial econômico e da versatilidade dessas fibras em diferentes indústrias, a produção industrial dessas plantas está associada a realidades sombrias, frequentemente ignoradas pelos principais atores do setor. A produção em larga escala de plantas fibrosas há séculos é imposta a comunidades tradicionais que, além de exploradas, enfrentam invasões territoriais e apropriação cultural.

O trabalho análogo à escravidão, as condições precárias e as invasões territoriais são problemas recorrentes nas cadeias produtivas de fibras naturais no Brasil. A exploração da palmeira piaçava, planta de grande relevância cultural para os povos indígenas do Alto Rio Negro, está historicamente ligada à escravização de comunidades locais e ao trabalho infantil, práticas que persistem até os dias de hoje. A piaçava, símbolo cultural da região, teve seu significado deturpado para alimentar uma cadeia produtiva que explora tanto seres humanos quanto ecossistemas inteiros.

Na produção de sisal, a situação não é diferente. Embora não seja uma planta nativa, o sisal poderia ser uma fonte sustentável de matéria-prima para artesãos e comunidades tradicionais. No entanto, a cadeia produtiva é marcada por denúncias frequentes e resgates de pessoas submetidas a trabalho análogo à escravidão.

A produção de juta e malva, conhecidas pela resistência e versatilidade de suas fibras, também está associada a condições insalubres. Trabalhadores enfrentam jornadas de mais de oito horas na água para realizar a extração. Embora haja narrativas que exaltam a juta e a malva como salvadoras da miséria, raramente se aborda o alto custo físico e mental imposto a quem depende dessas atividades, muitas vezes como única opção de trabalho.

Paralelamente, comunidades tradicionais preservam conhecimentos profundos sobre a extração e beneficiamento de fibras nativas com qualidades notáveis, como o caroá e o tucum. Esses saberes estão diretamente ligados à preservação da biodiversidade e das culturas ancestrais.

Iniciativas têxteis e industriais frequentemente demonstram interesse em fibras que se adequam ao uso industrial, mas o avanço do agronegócio sobre esses recursos causa apreensão entre defensores da sustentabilidade. Como seria possível criar modelos de produção de fibras naturais que respeitem tanto a integridade da natureza quanto as pessoas envolvidas no processo, se os problemas sociais e ambientais persistem há décadas? Por que comunidades tradicionais não são incluídas como protagonistas na construção de sistemas que regenerem o meio ambiente e promovam a prosperidade local?

Como afirmou Ailton Krenak, “a bioeconomia é um capricho ao gosto do capitalismo”. É utópico acreditar que as fibras “descobertas” pelo mercado serão tratadas de forma diferente no futuro? Se basearmos nossas previsões nos fatos históricos e nas realidades atuais, a resposta parece ser não. Contudo, ainda há esperança em iniciativas que fomentem cadeias produtivas locais focadas na agricultura regenerativa, sustentabilidade socioambiental e no trabalho colaborativo entre designers e artesãs. Essas alternativas rejeitam a criação de indústrias que ultrapassam os limites do planeta, valorizando o conhecimento ancestral e as práticas tradicionais.

Tudo o que nos resta é o futuro — e a esperança de que novos modelos produtivos possam, finalmente, respeitar e proteger os saberes e o trabalho ancestral dos povos originários que lidam com fibras naturais locais.

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