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Como o Brasil se imagina?

Lilia Schwarcz, historiadora, antropóloga e escritora, reflete sobre as imagens contraditórias que representaram e representam o País

Como o Brasil se imagina?
Como o Brasil se imagina?
“A imagem do Brasil alegre, do futebol e do Carnaval foi sendo substituída, lá fora, pela da violência e, depois, pela imagem de um País de extrema-direita, carola, fanático”, diz Lilia – Imagem: Andressa Anholete/Getty Images/AFP, Renato Parada e Redes Sociais
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Ao tomar posse da cadeira número 9 na Academia Brasileira de Letras, em março de 2024, a historiadora, antropóloga e escritora Lilia Schwarcz disse, em seu discurso, estudar “o Brasil que temos”, mas sonhar sempre “com um Brasil melhor”. Autora de mais de 30 livros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo, professora visitante em Princeton e bastante presente nas redes sociais e na mídia, Lilia ficou cada vez mais conhecida graças às suas pesquisas, mas também à sua capacidade de comunicação, como uma intérprete perspicaz do País. Hoje, quando reflete sobre o Brasil, Lilia não consegue deixar de olhar para a centralidade que os marcadores de raça e cor têm no panorama de nossas desigualdades não só raciais, mas também econômicas e sociais. Em seu mais recente trabalho, Imagens da Branquitude: a Presença da Ausência (Companhia das Letras), ela inventaria um conjunto impressionante de imagens para demonstrar como os registros legitimam a hierarquia social. “Parte significativa do Brasil se imagina branca, a despeito de vivermos num país em que 55,5% da população é negra”, escreve.

Neta de um judeu francês, que deixou o país rumo ao Brasil na década de 1930, ela nasceu em São Paulo, e estudou no famoso Ginásio Vocacional, uma escola pública experimental. Lá conheceu Luiz Schwarcz, com quem fundou a editora Companhia das Letras e teve dois filhos. Dona de uma expressão sorridente e de um riso aparentemente fácil, Lilia conversou com CartaCapital, por Zoom, de sua casa, em São Paulo.

CartaCapital: Queria começar esta conversa pelo tema do Enem deste ano, que você chegou a comentar no ­Instagram: Os Desafios para a Valorização da Herança Africana no Brasil. Pensei nisso por ser esse também o tema que mais mobiliza. Você acha que hoje, quando falamos de brasilidade, temos de falar obrigatoriamente sobre racismo?
Lilia Moritz Schwarcz: Um tema como esse do Enem vai além do racismo. É também sobre memória. A única coisa que ponderei, no comentário no ­Instagram, é que deveria estar escrito “heranças africanas”. São muitas as Áfricas que fizeram o Brasil. Mas, voltando ao tema, entendo que a proposta seja falar sobre esquecimentos. O direito à memória é um direito republicano e estamos falando de populações que, por anos a fio, não tiveram o respeito à sua memória. Como diz Walter Benjamin, a história mais esquece do que lembra. E a nossa, sistematicamente, borrou e apagou a memória desses povos todos que vieram pra cá e trouxeram, com eles, filosofias, geografias, cosmologias, religiões, técnicas para lidar com ferro, mármore e bronze, e formas de planejamento e traçado. Estamos falando de muitas heranças, que estamos demorando a reconhecer. E isso é uma pena para nós. Dessa constatação, decorre a pergunta: por que não temos essa memória? Uma das respostas é: porque somos um país racista.

“Imaginários produzem conhecimento e imagens oficiais constroem formas de ver e entender. O olho não vê tudo”

CC: Em Imagens da Branquitude, a senhora diz que busca retrabalhar esse conceito da branquitude e até tirar dele certo peso acusatório. Gostaria de ouvir sobre o seu próprio caminho como intelectual que reflete sobre o tema, porque esse caminho não se fez sem dores e polêmicas, não é?
LMS: Sou de uma geração na qual os brancos falavam por. E, cada vez mais, a gente vai aprendendo que não é nem só o caso de falar “com”, mas de deixar falar. Muita gente compreende mal o conceito de lugar de fala, muito divulgado aqui pela Djamila Ribeiro, mas cuja origem são as teorias do Foucault. O ponto não é só que as populações negras e indígenas têm lugar de fala, e sim que nós, a população branca, não carecemos de lugar de fala. Historicamente, a gente vê que as populações brancas ascendem muito mais do que as populações negras. Trata-se de um processo perverso que eu, que me encaixo completamente na branquitude, precisei compreender. O livro traz algumas conclusões às quais cheguei, passando também por momentos de dor. Meu livro O Espetáculo das Raças e a biografia do Lima Barreto são, em geral, bem aceitos pelo movimento negro, mas levei várias travas importantes no meu percurso para parar de achar que ia falar por. Essa minha guinada tem a ver com uma mudança na minha percepção e tem a ver também com as cotas. Deixei de ser alguém que não acreditava nas cotas para me tornar uma que defende cotas na universidade e em todos os espaços. Hoje, me considero uma aliada do movimento negro. O que significa ser um aliado, na concepção da Sueli Carneiro? Ser uma pessoa que não vai sair do seu lugar e não vai se transformar nos outros, mas que sabe que, no Brasil, as populações negras não são minorias, porque, numericamente são maiorias, mas são maiorias minorizadas na representação. Estamos falando de uma grande contradição nacional, que afeta mais de 50% da população. Então, ela diz respeito às populações negras, que são as mais prejudicadas, mas diz respeito a mim também. E meu desejo é que outros brancos compreendam que essa é uma questão que afeta todos nós. Como você disse, nem todo percurso é só virtuoso, mas, como eu escrevi naquele episódio da Beyoncé (em 2020, a autora escreveu um artigo em que analisava a postura da artista), quero viver em um mundo em que a gente possa errar e aprender com o erro.

CC: Eu queria tentar estabelecer um elo entre Imagens da Branquitude e Brasil: Uma Biografia, lançado dez anos atrás. No novo livro, há imagens que escancaram o nosso racismo e que nos constituem. Mas há também outras imagens que nos constituíram ligadas a um Brasil festivo, do samba, do Carnaval, do futebol, imagens que também traziam negros. Qual seria o diálogo entre esses dois imaginários?
LMS: No Imagens da Branquitude, trato de novo da ideia da malandragem com imagem. Mostro que a malandragem é negra, e é tratada como bêbada, ou com um sapato furado. Acho que, em Brasil: Uma Biografia, Heloísa (Starling) e eu fizemos um esforço grande para mostrar como toda a nação se imagina. Tem um sociólogo, o Benedict Anderson, que fala de comunidades que se imaginam. Mesmo não tendo essa consciência, a gente, ao pensar no malandro, por vezes violento, bêbado, e não está apto à cidadania, lembra, no nosso imaginário, de um negro ou pardo. Imagem tem a ver com imaginário e magia. Imaginários produzem conhecimento e imagens oficiais constroem formas de ver e entender. Símbolos não são aleatórios. Como digo no livro, mesmo tendo a capacidade de “ver”, nós nem sempre conseguimos “enxergar”. O olho não vê tudo.

CC: As imagens do samba e do futebol ainda constituem um imaginário em torno do Brasil?
LMS: Dou aula fora do Brasil há quase 20 anos, e só em Princeton estou há mais de dez. Quando cheguei, vi essa ideia do Brasil alegre, do país do futebol, da malandragem, das cores, do Carnaval, do samba, das mulatas lindas… Essa imagem ruiu há muito tempo. Lá fora, ao menos, esse imaginário foi substituído, na última década, pelo da violência. Também houve o momento, sob o governo Obama, em que a imagem do Brasil estourou: achava-se que o País daria respostas para o mundo, algo que não aconteceu. E, depois, o Brasil ficou marcado pela imagem do bolsonarismo: um país de extrema-direita, evangélico, carola, fanático. A imagem do Carnaval continuou forte, mas foi contaminada pela imagem do país da falta de segurança e, então, da extrema-direita. E, internamente, quando a gente pensa na extrema-direita, o imaginário é de um Brasil do empreendedorismo, fanático, branco, classe média e heteronormativo.

O quadro de Arnaud Pallière (1830). Nada de magia, Neymar representa o futebol do “vou me dar bem” – Imagem: Redes sociais

CC: Esse Brasil, na verdade, até refuta a imagem do Carnaval.
LMS: Sim, esse país não combina, de maneira alguma, com a ideia de paraíso tropical e com aquela imagem festiva. Agora, no caso do futebol, tem uma coisa interessante. É como se o futebol pudesse ser desmembrado: caiu a imagem do futebol magia, do futebol arte, mas temos o futebol do “vou me dar bem”. Tanto que figuras isoladas do self-made man, supostamente bem macho, como Neymar, são idolatradas por esse grupo.

CC: Quais os nossos pactos sociais ainda vigentes e quais se desfizeram?
LMS: Somos uma sociedade que tende a normalizar vários golpes. Tivemos vários golpes, e quarteladas também. Tivemos um golpe muito forte em 2016, com o impeachment de Dilma Rousseff, que deu lugar a esse baixo clero que foi minando o jogo democrático, e o pacto democrático no País. O golpe de 2016 abriu espaço para o governo de Jair Bolsonaro, que não tem compromisso nenhum com a democracia e que, como todo governo populista, oferece mundos e fundos porque não tem a intenção de cumprir nada. Acho que a terceira República brasileira, aquela criada a partir da Constituição de 1988, fez um pacto democrático. Nossa Constituição Cidadã é inclusiva e muito generosa no que se refere aos direitos sociais e civis. Esse pessoal de Jair Bolsonaro é um grupo retrógrado não por ser direita, mas porque não respeita a Constituição. Esse desejo de democracia foi caindo mundo afora, e alguns conceitos, como o de liberdade de expressão, foram sequestrados pela direita. Fake news não são liberdade de expressão, são mentiras. Neste momento, temos uma cisão no centro da República brasileira. O presidente Lula não pode contar com a Câmara e o Senado. Ou seja, muitos pactos foram se desfazendo. A gente também tem uma nova geração cujo sonho não é ter um emprego CLT, mas empreender individualmente. É a famosa geração do who cares? Então, acho que esses pactos que a gente vinha levando tão bem desde a Constituição de 1988, se não se desfizeram, estão, ao menos, bastante rompidos ou esgarçados.

CC: Qual o lugar do intelectual público hoje? A senhora tem mais de 500 mil seguidores no Instagram. Como você trafega por esses lugares, e mais: por que acha importante estar neles?
LMS: Tudo nessa história é um contexto. Nada é um destino, não é? Tudo é um contexto. Eu tinha um Instagram muito vinculado ao Masp (ela foi curadora-adjunta do museu), com imagens, fotografias – sou uma fotógrafa amadora. E foi durante o governo Bolsonaro que isso foi crescendo. Venho da escola pública, fiz universidade pública e leciono na maior universidade pública da América Latina, e aquele era um momento em que o governo Jair Bolsonaro atacava muito a academia. Meu primeiro impulso veio do (Abraham) Weintraub, o nosso “desministro” da Educação, dizendo que ia ser antropólogo. Comecei a me posicionar, e essa presença no Instagram foi apenas acontecendo. Existem muitas formas de se ser intelectual. A primeira delas é você ser fiel à academia, no sentido de produzir pesquisas cientificamente certificadas, trabalhar com os documentos corretos, contrastar documentos. Eu sempre tive facilidade de me comunicar e escrever, e os posts eu faço aqui, na minha caderneta de notas. Sou uma acadêmica, mas aprendi que a extrema-direita tem uma ­expertise muito grande nas redes sociais e que há, por parte dos setores progressistas e da esquerda, certo preconceito em relação às redes. E eu sempre parto do princípio de que, se a gente não ocupar esse espaço, não pode se queixar que outros ocupem. Sempre defendi também que a cidadania é uma franquia da democracia e que cada um cumpre a sua cidadania do jeito que dá. Vamos combinar que esses são meus 20 minutos de cidadania por dia, e aí eu volto para meus trabalhos, meus livros, meus ensaios. •

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Como o Brasil se imagina?’

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