Economia
O império do meio. E do futuro
Globalização e geopolítica num mundo sinocêntrico


O ex-diplomata singapurense Kishore Mahbubani definiu o século XXI como o século asiático e destacou a República Popular da China como o principal protagonista desse processo. Como isso pode ser compreendido, quais implicações para a geopolítica e a economia global? A ascensão da China tem desafiado o universo cognitivo de acadêmicos e formuladores de política.
Existem analistas que interpretam a ascensão econômica chinesa como um processo histórico cíclico de eterno retorno, isto é, que o comportamento das grandes potências em ciclos de ascensão e queda tem uma lógica predeterminada e que seus comportamentos são similares ao longo da história. Essas interpretações, que podem ir desde uma teoria de sistema do mundo mecanicista até o positivismo metodológico de teorias realistas e neoinstitucionalistas das relações internacionais, não conseguem detectar as mudanças qualitativas em curso.
Essas mudanças qualitativas começam no plano doméstico, nas reformas levadas a cabo pela China desde o seu processo revolucionário de 1949, caminhando uma trilha, não isenta de contradições, mas gerando seu próprio caminho modernizador, aquilo que Elias Jabbour e Alberto Gabriele denominam como Nova Economia de Projetamento no socialismo do século XXI – que de fato atravessou por diferentes períodos de reformas. Por outro lado, temos as mudanças que se desdobram no plano internacional, à medida que a experiência chinesa se consolida internamente e atinge objetivos econômicos, sociais e políticos. A projeção de poder econômico do país vai configurando, a partir da ordem econômica existente, um novo paradigma de relacionamento internacional e intercivilizatório, uma globalização que se pretende inclusiva e que, simultânea e inevitavelmente, está recriando a geopolítica entre as nações.
A China é, ao mesmo tempo, o maior exportador de bens de consumo e o maior mercado consumidor
Como transformação doméstica destaca-se a taxa real média de crescimento do PIB da China de 9,1% entre 1978 e 2019. Além disso, a renda per capita acompanhou uma taxa de crescimento similar de 9%, de 280 em 1980, para 8.827 em 2018, chegando a 12.614,06 dólares em 2023. A expectativa de vida ultrapassou aquela dos Estados Unidos em 2020, chegando a 78,21 anos. No ano passado, atingiu a marca de 78,6 anos. Os chineses conseguiram erradicar a pobreza extrema em 2020. Em 40 anos, cerca de 800 milhões de habitantes saíram dessa condição.
Entre 1982 e 2011, a taxa de investimentos em comparação ao PIB foi de 36,9% e, desde 2004, opera acima da casa dos 40%, segundo dados do Banco Mundial. Desde 2013, é o país com maior volume de comércio exterior no mundo, gerando efeitos generalizados sobre a oferta e demanda de todas as demais nações. A China é, ao mesmo tempo, o maior exportador de bens de consumo e o maior mercado consumidor. Como resultado, ocupa o posto de principal parceiro comercial de mais de 120 países e da maioria dos aliados dos Estados Unidos, União Europeia incluída, como bloco. Como “fábrica global”, tem uma posição central na cadeia de abastecimento e na cadeia de valor globais.
Em termos financeiros, a China tornou-se o maior credor líquido do mundo e o maior provedor de financiamento, à frente do Banco Mundial e do Banco Asiático de Desenvolvimento, sendo o ator mais importante em investimentos em infraestrutura para países em desenvolvimento. No que se refere aos avanços tecnológicos, ocupa uma posição de liderança em alguns campos de alta tecnologia, como telecomunicações 5G, indústria farmacêutica, montadoras de automóveis, indústria aeroespacial, semicondutores, IT e robótica. Segundo o think tank australiano ASPI, os chineses lideram 37 das 44 tecnologias críticas principais que abarcam os seguintes setores: defesa, espaço, energia, meio ambiente, Inteligência Artificial, biotecnologia, robótica, cibernética, computação, materiais avançados e áreas-chave de tecnologia quântica. Uma pesquisa da Universidade de Leiden, nos Países Baixos, mostra que 15 instituições de ensino superior do país entre as primeiras 20 lideram a produção científica. Segundo a Bloomberg, os chineses lideram os gastos globais em transição energética, que é maior do que os EUA e a União Europeia juntos. Finalmente, mas não menos importante, a China possui mais de 40 mil quilômetros de trens de alta velocidade em operação.
Em outros termos, esses avanços constituem uma mudança qualitativa impressionante. Portanto, o processo de modernização da China diverge radicalmente da expansão capitalista europeia que se consolidara no século XIX por meio do imperialismo e do colonialismo, invadindo e saqueando países para alavancar a prosperidade no centro do capitalismo. Em outras palavras, a trajetória chinesa desde a abertura de 1978 seguiu um roteiro singular que se caracterizou pela transformação do país em uma potência comercial, industrial e financeira, ingressando no capitalismo global a partir de um forte planejamento estatal, reformulando o velho projetamento de estilo soviético para um projetamento de nova geração, inovador e com estímulo de um mercado dinâmico.
São mais de 40 mil quilômetros de trens de alta velocidade. Jiping conduz a nova fase – Imagem: iStockphoto e Ju Peng/Xinhua/AFP
O tamanho da economia, do território e da população da China é proporcional aos impactos políticos e geopolíticos do seu processo de desenvolvimento econômico e social. A dinâmica que levou ao surgimento desta NEP está intrinsecamente ligada às formas inovadoras de institucionalização que demarcam os traços de um novo tipo de formação econômico-social. Isto é, o que os chineses denominam de socialismo de mercado ou socialismo com características chinesas ou, como destaca o economista Barry Naughton, o surgimento de um novo sistema econômico. O principal agente desse processo é o espírito inovador e, ao mesmo tempo, regulador liderado pelo Partido Comunista da China, onde, segundo a Constituição do país, a propriedade pública dos meios de produção e o controle estatal dos recursos estratégicos e dos grandes bancos são os fundamentos do sistema econômico.
De fato, a experiência socialista chinesa e seu processo modernizador estão instituídos sob o ideário marxista-leninista, mas também nos valores civilizacionais construídos ao longo de 5 mil anos de história, fato que levou ao surgimento de um contraponto geopolítico em relação à globalização neoliberal liderada pela hegemonia estadunidense.
A expansão chinesa está ancorada em pilares que foram construídos desde 1949. Esses pilares são: 1. Os cinco princípios de coexistência pacífica, que inclui a não intervenção nos assuntos internos de outros Estados. 2. Uma visão holística da cooperação Sul–Sul, ancorada nos cinco princípios mencionados. 3. Uma política de Fóruns com o Sul Global, cujo exemplo mais destacado é o Fórum de Cooperação China–África (Focac) e, na América Latina, o Fórum China–Celac. 4. A Iniciativa do Cinturão e a Rota, lançada pelo presidente Xi Jinping em 2013, que se configura como a grande plataforma de infraestrutura da expansão chinesa e conta com mais de 1 trilhão de dólares de investimentos em projetos que vão de portos, ferrovias, estradas etc. 5. A ampliação dos BRICS, tornando-se BRICS plus. 6. A ideia de Comunidade de Destino compartilhada para a Humanidade, que pretende inaugurar um novo paradigma de relacionamento internacional e civilizatório.
A globalização com características chinesas é a antessala de uma moderna geopolítica, em contraponto ao colonialismo e neocolonialismo ocidental
Novos documentos oficiais da China resumem esses pontos em três ambiciosas iniciativas para uma nova convivência global: a Iniciativa de Desenvolvimento Global, a Iniciativa de Segurança Global e a Iniciativa da Civilização Global. Esses pilares outorgam sentido material e ideacional ao que denominamos uma globalização com características chinesas, que se apresenta como um constructo histórico institucional e multidimensional numa realidade mundial policêntrica. Nesse sentido, a experiência chinesa é um caso sem precedentes de um país que, estando na periferia capitalista na década de 1940, consegue recriar-se como nação e representar um novo centro a partir de um sistema econômico superador.
A globalização com características chinesas, amparada por sólidos instrumentos políticos, financeiros e institucionais gerados pela entrada da China em um inédito estágio de desenvolvimento, é a antessala de uma moderna geopolítica que se contrapõe ao colonialismo e neocolonialismo ocidental, em processo de evolução histórica.
Concluímos que a geopolítica da China, temática que merece um amplo debate, enquanto expressão da manutenção e reprodução dos valores civilizacionais do país, guarda diferenças profundas em relação à geopolítica gestada pela globalização financeira ancorada no poder militar expansionista, no dólar estadunidense e no poder midiático. Em outros termos, a denominada geopolítica da China expressa-se como um processo em que as relações internacionais são subsumidas em relações de convívio intercivilizatório, num movimento de hibridização em aberto. •
*Professor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador da Especialização em China Contemporânea da PUC–MG. Pesquisador do grupo de trabalho China e o Mapa do Poder Mundial da Clacso.
Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘O império do meio. E do futuro’
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